quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Lenda do Contador de Histórias

Há pessoas nas Minas Gerais de extremo talento oratório capazes de criar exímias histórias. Durante a minha estadia na fazenda Recanto do Luar pude conhecer Seu Gregório e suas surpreendentes e aterrorizantes histórias. Era quando a noite caía e nos reuníamos em volta da fogueira que Seu Gregório tomava a voz do ambiente para si, e nós – eu, moradores e empregados da fazenda – o emprestávamos os ouvidos. Éramos todos a platéia daquele homem que com sua narração nos transportava para diversos lugares dentro da sua cabeça, como numa viagem de trem. E foi numa noite de lua cheia que presenciei a mais pavorosa história que jamais ouvi. Sim, digo presenciei pelo fato de que coisas sobrenaturais aconteciam enquanto eu ouvia mais uma história de Seu Gregório. Lembro-me ainda daquela história e dos sentimentos que ela despertara dentro de mim e assim ela me foi contada:
Clara era uma jovem mulher que sonhava com um marido. Como morava na fazenda, e esta se fazia distante da cidade e de outras fazendas da região, Clara sentia uma necessidade de cavalgar pelos campos em procura de amizades e um amor. O Coronel Antenor é que não gostava de ver sua filha cavalgando por terras que ela não conhecia. Tinha medo de que ela se encontrasse em seu caminho com malfeitores que dela se aproveitassem. Foi quando Coronel Antenor descobriu que Clara havia conhecido Seu Rafael, e com ele se encontrava todas as tardes, resolveu proibir a filha de cavalgar para longe da fazenda.

– Mas, pai, que mal há de cavalgar com Seu Rafael?
– É que esse moço é filho de Quirino, e esse homem já aprontou tanto que só tem o meu rancor e meu ódio. E sabendo Quirino que o filho cavalga com minha filha por aí, é capaz de querer fazer alguma maldade só para me aborrecer. Então trata de não encontrar nunca mais esse Seu Rafael. E se eu faço isso é porque quero o seu bem.

Até este momento prestava eu atenção à história com certa curiosidade. As pessoas a minha volta não faziam um ruído sequer, pois sabiam que uma história memorável começara a se desenvolver junto ao calor do fogo. Nosso narrador continuou a contá-la:

Clara se sentiu injustiçada pelo castigo imposto devido a desavença do pai e de Quirino, e um dia mandou um menino da fazenda entregar uma carta a Seu Rafael. Na carta estava combinado um lugar próximo à fazenda para um encontro na manhã seguinte. Clara se aprontou logo e tão bela se pôs a cavalgar para o campo a oeste da fazenda. Eu estava tão imerso na história de Seu Gregório que neste exato momento ouvi os cascos do cavalo de Clara castigando o chão em seu galope. Porém não encontrou Seu Rafael neste dia e nem nos próximos dois meses. Clara vivia agora tranca-da em seu quarto e estava tão magra e pálida, parecia muito doente, como se já esperava a morte chegar. Coronel Antenor se compadeceu e resolveu dar uma festa na fazenda para a filha que faria aniversário na próxima semana. Matou um porco, chamou os violeiros e sanfoneiros, deixou um cartaz na cidade, queria a fazenda cheia em festa para ver de volta a alegria da filha. E então uma festa como um baile de máscaras aconteceu, porque Clara se julgava tão feia que somente aceitou a festa se pudesse esconder o seu rosto. Eu mesmo ouvia as músicas em meus pensamentos.

A festa se estendeu por toda a noite e ainda de madrugada Clara não parecia feliz. Comera pouco e recusava os convites para dançar. Somente havia dançado com o pai aquela noite algumas músicas, ficando sentada no banco encostado a parede na maior parte da festa. Coronel Antenor foi tomado pela tristeza da filha e imaginou que Clara não teria jamais um sentimento de felicidade. Eu ouvindo a história já sentia pena da jovem mulher e percebi alguém sentado num banco mais distante. Parecia uma moça e estava sozinha no escuro. Somente via o branco do vestido a balançar na fresca brisa da noite. A esta altura da história Clara foi convidada por um estranho mascarado para uma dança. Algum sentimento adormecido dentro dela despertou e nos braços daquele homem ela se envolveu numa dança graciosa. A dança era imitada pela mulher de vestido branco que nos acompanhava de longe. Parecia se divertir com a história e agora incorporava a personagem Clara dançando solitária. Coronel Antenor foi tomado de súbita alegria e a verdadeira festa começou. Todos dançavam e cantavam, e comiam, e riam, e conversavam, e bebiam, e beijavam, e caíam.

Enquanto a festa continuava, o casal se retirou para fora da casa em busca de privacidade e se puseram a caminhar de mãos dadas enquanto trocavam conversas diversas. Nem foi preciso o homem retirar a máscara para Clara saber que se tratava de Seu Rafael. Amaram-se durante aquela noite e as outras seguintes com o consentimento do Coronel Antenor que não mais se opunha à felicidade da filha. O casamento foi marcado para o mês seguinte e Clara já recuperara todo o seu vigor.

Chegado o dia do casamento, a capela de Nosso Senhor Jesus do Bonfim se encontrava cheia de gente de toda a cidade e da roça. O noivo ansioso esperava no altar a sua noiva que estava atrasada, como acontecia com noivas em tantos outros casórios. Depois de quase uma hora de atraso a carruagem da noiva para próximo à porta da capela e dela desce a noiva exuberante em seu longo vestido branco. Coronel Antenor, tomado pela emoção, acompanhou a filha e a entregou ao genro. Foi quando o casal se preparava para trocar as alianças que entrou na capela o Quirino acompanhado de muitos capangas. Neste momento a fogueira bruxuleava como se apavorasse e presa às toras e o carvão tentasse escapar. Os estalos estridentes eram como gritos de lamento e clemência.

– Meu filho não vai se casar com essa vagabunda.

E sacou um revolver disparando na jovem Clara. Dois dos disparos atingiu seu peito enquanto os capangas chacinavam os convidados que assistiam o casamento. Somente o padre e Seu Rafael foram poupados, mas não poupado este último dos açoites do chicote de Quirino.

– Vem pra casa, moleque desobediente.

E foi arrastando Seu Rafael pela capela até que as luzes se apagaram e a porta se trancou. Do altar, Clara se levantou e agora era ela a luz. Uma rajada de vento partiu dela empurrando tudo e todos contra a parede. Nenhum disparo e nem as orações do padre eram capazes de enfrentar a fúria daquela mulher. Da sua boca saíram as palavras:

– Devolva-me aqui o meu marido, pois quero cavalgar com ele pelos campos.

E contra a vontade de Seu Rafael este foi de encontro à sinistra e branca mulher que se recusou a morrer. Clara apanhou um cavalo fora da capela e se pôs a cavalgar com seu marido para os campos enquanto os moradores da cidade fugiam da frente do cavalo daquela mulher apaixonada. E nesta hora um cavaleiro interrompeu a história invadindo o pátio de fora da fazenda e parou ao lado da mulher de branco. Esta subiu ao cavalo e partiram em cavalgada pela noite de lua cheia. Eu mal pude compreender se aquela história era real ou se teria escapado da mente de Seu Gregório. Nosso narrador jogou água na fogueira e nos chamou para dentro da casa:

– Vamos nos deitar, não traz bom agouro inter-romper o amor destes que dois. Deixemos que cavalguem alegremente pelos campos e se outra vez os encontrarem, deem a eles os devidos cumprimentos e desejos de felicidade.

André de Sá

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