quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Estranho Hóspede

A fazenda Queda D’água costumava receber hóspedes de diversas partes do Império, parentes de Seu Francisco Miguel que vinham tirar descanso de seus estudos no Rio de Janeiro, São Paulo ou até mesmo na Europa. Francisco Miguel de Oliveira, Seu Francisco Miguel era homem generoso e acolhia a todos que podia de braços abertos. A casa grande da fazenda possuía a forma de uma ferradura e contava com vários espaçosos e aconchegantes quartos, ao todo dez estavam disponíveis para os hóspedes que vinham buscar repouso. Um misterioso hóspede que se dizia primo distante de Seu Francisco Miguel se hospedou na última semana na fazenda causando murmúrio entre a família e os escravos.

Azael chegou na manhã de quinta-feira tão logo se instalando em um dos quartos que davam para os fundos da casa. Suas poucas palavras ditas durante o primeiro dia que se fez hóspede de Seu Francisco Miguel se limitaram a um ligeiro cumprimento ao seu anfitrião e curtas ordens dirigidas aos escravos da fazenda. Carregava consigo uma mala e na cabeça um chapéu que juntamente com a espessa barba escondiam o rosto de menino daquele homem de corpo robusto. Teria vindo de Portugal onde estudava medicina. Ficou trancafiado no quarto o dia todo e sua chegada se fez assunto entre os escravos na lavoura e no trabalho doméstico. A cozinheira Joana, enxerida que só ela, veio inquirir Seu Francisco sobre o novo hóspede:

– Quem é esse daí, Seu Francisco Miguel? Nunca que vi na vida.
– Que te importa quem seja? Vá cuidar do seu serviço.
– Ora, Seu Francisco Miguel, é que eu careço de saber o que é que esse moço gosta de comer pra eu poder cozinhar.
– Prepara o que você quiser. Se ele preferir comer outra coisa que se dirija a você. Já dei instruções a ele.
– O Sinhô é que manda.

Azael não desceu para o almoço, pediu para Joana levar-lhe uma xícara de chá e uns biscoitos. Somente à noite após se banhar é que se fez presente na sala onde estava servido o jantar. Estavam na mesa juntos com Seu Francisco Miguel, Dr. Justino, Antonina e Pedro; filho, nora e neto de Seu Francisco Miguel, além de três sobrinhos hóspedes. Com todos os olhares da casa postos em Azael e o olhar deste sem se desviar do prato de comida, o jantar se fez silencioso exceto pelo tilintar dos talheres. Pouco comeu Azael e ligeiramente retornou ao seu quarto o que gerou conversação entre os sobrinhos que logo foi interrompida por Seu Francisco Miguel.

– Quero silêncio enquanto eu faço minha refeição.

A noite caiu e logo todos se puseram a dormir. Lá fora raios distantes cortavam o céu lançando luz à fazenda sem fazer retumbar um trovão sequer. Em toda a casa jazia um silêncio absoluto e uma escuridão a penetrava com a exceção do quarto de Azael que se manteve iluminado durante toda a noite. Joana parece ter sido a única a perceber e logo pela manhã se dirigiu ao Seu Francisco Miguel:

– Seu Francisco, que é que esse moço Azael ficou fazendo de noite que deixou a vela do quarto acesa?
– Para de se intrometer dos assuntos dos outros. Quer dizer que andou espionando meu parente? Se ele passou a noite com a luz da vela acesa provavelmente estava estudando seus livros.
– Espiando não Sinhô. É que fiquei preocupada achando que o moço tava com queixa de alguma coisa.
– Se tivesse teria chamado alguém. Agora para de implicar com meu parente e vá trabalhar.
– Com sua licença.

E enquanto Joana se retirava à cozinha Benedito adentrou correndo a casa se dirigindo em encontro ao Seu Francisco Miguel.

– Que foi crioulo? Que pressa é essa?
– Sinhô Francisco Miguel, o Expedito sumiu, não tá em lugar algum da fazenda.
– Diacho. Eu mato esse preto se ele tiver fugido. Vá você procurá-lo e leve Cosme junto. Tragam-me de volta esse infeliz.

Cosme era capitão do mato de confiança de Seu Francisco Miguel. Conhecia cada canto da região e fora líder em uma empreitada que derrubou um quilombo a alguns quilômetros da fazenda. Nenhum escravo ficava fugido da fazenda por muito tempo.

Azael novamente passara todo o dia trancafiado. Nas raras vezes em que deixava o quarto mantinha a porta trancada. Já na casa as pessoas aos poucos acostumavam com a estranha presença do hóspede. Joana é que não parou de cismar com a excentricidade do parente de Seu Francisco Miguel, e este se mantém calado sobre o jovem estudante de medicina.

Outra noite caiu e Azael manteve acesa a luz das velas que iluminavam seu quarto. Lá fora uma fina chuva molhava os campos novamente iluminados pelos silenciosos relâmpagos que, apesar produzir fortes clarões não trovejavam. Apesar da situação climática, Joana que não conseguia dormir por causa da imensa curiosidade acerca do jovem hóspede se dirigiu para a parte lateral exterior da casa, bem abaixo da janela do quarto de Azael. E com uma escada de madeira ela subiu até a altura da janela do quarto a fim de espreitar o hóspede. Para a surpresa de Joana não se encontrava ninguém no quarto, apesar das velas acesas. Tudo estava em ordem. Por causa da chuva e do frio que começava a fazer, Joana retornou para a casa e se dirigiu ao seu quarto que ficava próximo à cozinha onde passou o restante da noite ponderando sobre Azael:

– Isso não me cheira bem, esse moço deve de ta aprontando alguma coisa e eu ainda vou descobrir. Se ele pensa que me engana, enganado ta é ele. Eu aposto que deve de ta roubando Seu Francisco Miguel. Amanhã mesmo eu vou entrar no quarto desse moço e revirar tudo até descobrir alguma coisa.

Ao amanhecer mais uma vez a notícia de um escravo fugitivo, o que deixou sem paciência Seu Francisco Miguel e causou suspeita em Joana.

– Olha Seu Francisco, eu não queria ser enxerida, mas esse moço Azael teve sumido a noite toda. Não acha esquisita a sumida do outro preto?
– Você não tem jeito mesmo, não é Joana? Como sabe que Azael esteve sumido?
– Eu fui espiar ele lá no quarto pra saber que é que esse moço fica fazendo de madrugada e não vi ele em canto algum.
– Eu devia dar a você um castigo se não estivesse muito preocupado com esses sumiços. Não perturbe o rapaz, ele não tem nada com essa situação.
– Ah se tem! E eu vou descobrir.

Disse isso em voz baixa sem deixar Seu Francisco Miguel escutar. Durante o dia a mesma monotonia levara Azael, em momento algum deixou o quarto e Joana teve que adiar as suas investigações. Durante o jantar Joana julgou a oportunidade com um tempo demasiado curto para uma tentativa e optou por esperar que todos se retirassem para os quartos e dormissem. Pegou o molho de chaves de reserva e se dirigiu à porta do quarto de Azael. Antes de abrir a porta, Joana pôs seu ouvido à madeira na tentativa de ouvir algo. Nenhum ruído sequer vinha do interior do quarto que pela terceira noite mantinha a luz das velas acesas. Colocou a chave no buraco da fechadura e começou a girar lentamente destrancando a porta. Em um movimento que parecia ter toda a eternidade para se fazer, a porta foi se abrindo com o leve peso da mão de Joana que teve seu movimento bruscamente interrompido por uma voz de dentro do quarto:

– Que direito tens tu de invadir meu quarto?
Joana foi pega de susto e já suas pernas e voz vacilavam.
– Oh, Seu Azael, o sinhô me desculpa, mas é que eu vim saber se o sinhô carecia de alguma coisa. É que eu vi essa luz acesa...
– Basta! Não quero saber de desculpas. Amanhã terei uma conversa com Seu Francisco Miguel. E tu vês se não me amola mais.
– Não carece de fazer preocupação com Seu Francisco...
– Chega! Não te quero aqui nem mais um segundo.

Joana voltou ao seu quarto apreensiva da vindoura queixa de Azael ao Seu Francisco Miguel acerca do recente acontecimento. Não esperava aquele encontro com o hóspede. Suspeitou que ele estivesse em alguma misteriosa aventura longe do seu quarto como na noite anterior. Pensou em fugir:

– Mas pra onde devia eu de fugir? Nem conheço as terras pra lá da murada. Eu ia ser pega e o castigo me viria dobrado. Que seu Francisco Miguel se apiede de mim. Valei-me Nossa Senhora do Rosário, santa dos pretos. Que é que esse moço apronta? Apareceu feito mágica na frente da porta. Aposto que é o Diabo que veio roubar as almas dos pretos pra impedir a nossa salvação. Valei-me Nossa Senhora do Rosário, afasta esse Diabo de mim.

Pela manhã Seu Francisco Miguel veio até Joana lhe pedir que preparasse refeições para ele e para Azael, pois planejavam cavalgar pelos campos durante todo o dia.

– Seu Azael fez queixa nenhuma com o sinhô não?
– Já falei para deixar de importunar o rapaz. Para de se preocupar com o que ele faz ou deixa de fazer, o seu trabalho aqui é cozinhar e só!
– Tá bom, sinhô, não tá mais aqui quem falou.

Preparou uma torta e um jarro de suco de laranja. Colocou a torta em uma cesta com fatias de broa de fubá, queijo e pão. Também deixou na cesta um pouco de geleia de morango, goiabada e biscoito de polvilho. Entregou a Seu Francisco Miguel que logo partiu com Azael. Era o momento de fazer uma visita ao quarto do hóspede. Pegou o molho de chave e se dirigiu ao quarto. Abriu a porta e adentrou. O quarto estava muito bem limpo e organizado, nem havia sinal de que alguém passara dois dias inteiros trancafiado no local. Joana começou a vasculhar o armário e a cama tentando encontrar algo que confirmasse suas suspeitas sobre o desaparecimento dos dois escravos. A única coisa que encontrou foi um livro com estranhas figuras que julgou ser dos estudos de medicina do hóspede. As ilustrações se tratavam de coisas que Joana nunca tivera visto e mal podia compreender. Sinais e símbolos também ocorriam nas páginas que Joana investigara além de inscrições, mas não sabia ler. Uma das figuras trazia estranhas formas geométricas desenhadas sobre o que Joana julgou ser uma plantação de milho. Não podia compreender nada daquilo. Outra figura trazia um objeto que voava nos céus sobre os homens. Julgou que fosse o livro do Diabo, fechou-o e se retirou do quarto.

– Seu Francisco Miguel corre perigo, esse moço quer fazer mal pra ele. Eu vou é seguir esses dois.

Pegou um cavalo já selado no curral e se preparava para partir quando chegou Cosme:

– Onde é que ocê pensa que vai, tá tentando fugir?
– Que fugir o quê, Seu Francisco Miguel saiu pra cavalgar com aquele Diabo do Azael, aposto que tá correndo perigo.
– Que que ocê tá falando, mulher?
– Eu vi um livro com umas figuras de Diabo lá no quarto desse Azael. Ocê por acaso encontrou os fugitivos?
– Não encontrei nenhum.
– Pois é disso que quero falar. Desde que esse Azael chegou dois pretos sumiram e agora foi ele com Seu Francisco Miguel cavalgar longe. Ele deve de tá aprontando alguma coisa e se ninguém fizer nada Seu Francisco Miguel vai ser o próximo a ficar sumido.
– Ora, mas ocê só pode ter ficado maluca.
– Escuta o que eu to te falando, Cosme. Ocê é homem esperto, não é atoa que é capitão do mato, nenhum escravo nunca ficou escondido d’ocê e agora ocê volta pra cá sem ter encontrado nenhum. Se ocê não vai fazer nada eu vou, me deixa ir atrás do Seu Francisco Miguel.
– Eu é que não vou deixar ocê atrapalhar o passeio do Seu Francisco Miguel, desce já desse cavalo.

Cosme já se aproximava para segurá-la quando Joana açoitou o cavalo que galopou em disparada derrubando o homem.

– Maldita seja ocê, Joana. Eu vou atrás d’ocê e te trazer de volta. Vou te dar uma surra que nunca mais vai querer me desobedecer.

Pegou outro cavalo e seguiu Joana a galope. A fazenda se situava num largo vale circundado de montanhas. Para o leste é que descia o riacho próximo que ia de encontro à estrada. Foi essa direção que Seu Francisco Miguel tomara com Azael, e Joana agora repetia o circuito. Já estava anoitecendo quando Cosme a alcançou sem sinal algum de Seu Francisco Miguel e Azael. Aproximou do cavalo de Joana e se preparava para derrubá-la quando um forte relâmpago cortou os céus repentinamente. Os cavalos se assustaram derrubando seus cavaleiros e fugindo desordenadamente.

– Olha o que ocê fez Joana, vai voltar pra casa andando pra aprender a largar de ser desobediente.
     Joana, espantada, sequer deu atenção a Cosme.
– Que foi mulher, parece que ocê viu um fantasma.

Joana foi caminhando à frente, atravessou uma cerca de arame e entrou no milharal. Cosme a seguiu impacientemente e já preparava o chicote para açoitar a mulher quando uma forte luz surgiu dos céus seguido de um barulho estridente. Ambos procuraram em vão um abrigo que não havia no milharal. Seus ouvidos zuniam. Cosme abriu caminho em meio à plantação a fim de verificar do que se tratavam esses acontecimentos. O milharal se estendia sobre uma colina e enquanto os negros subiam em meio à plantação aumentava o barulho e uma luz surgiu na noite tão reluzente como o sol. Ao chegar ao topo da colina os dois puderam ver no vale lá embaixo Seu Francisco Miguel e Azael, e logo acima deles um facho de luz se estendia até as nuvens. Num instante um clarão se fez cegando por um momento Joana e Cosme e, quando se recuperaram, Seu Francisco Miguel e Azael haviam desaparecido. No lugar deles estavam Expedito e Benedito, os escravos desaparecidos. Seus corpos traziam marcas, seus olhos vagos como se não tivessem vida e uma expressão de confusão e medo tomava conta de seus rostos. Ambos tremiam convulsivamente e balbuciavam palavras estranhas que Joana e Cosme não podiam compreender. Quando Cosme segurou a mão de Expedito e perguntou:

– Que foi que aconteceu homem?

Os olhos do negro ganharam vida novamente e fitaram Cosme com ameaça e da boca saíram as palavras:

– Nóis vimo o outro mundo!
André de Sá

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