sábado, 28 de junho de 2014

Amor no Ponto de Ônibus

- Estou atrasado! Oh, meu Deus!, onde foi que deixei a mochila? Ali está. Devo ir, o ônibus não tarda.

Augusto se aprontou e partiu, com aquela costumeira sensação de ter esquecido algo ou alguma coisa importante, levava as mãos a apalparem os bolsos da calça jeans já velha e desbotada. Lá estava as chaves, o celular, a carteira... a princípio nada ficara para trás. Talvez algum material necessário para a aula houvesse sido esquecido, mas não importava, sua intenção não é de ir à aula, na verdade, e sim de encontrar Marcela, sua namorada, e fazer aquilo que os jovens mais amam: jogar vídeo-game.


Já estava ele no ponto de ônibus e, ao contrário do que imaginara, não estava atrasado. Julgou a demora do ônibus de acordo com a quantidade de músicas já executadas em seu celular, que levava in-formações de forma barulhenta aos seus ouvidos através dos grandes fones que a moda resgatou dos anos 90. Já três composições rítmicas distintas castigaram seus tímpanos sem ainda um sinal do veículo de transporte. Essa barulheira frenética e aguda é uma das paixões de Augusto.

O que de forma alguma constituía sua lista de paixões é o ônibus, e lá vinha ele, lento e pesado, grande e vermelho, barulhento e fumacento. Ao subir, a primeira frustração: os bancos do fundo já haviam sido ocupados. Passou pela catraca e sentou-se em um dos bancos da parte central, na lateral direita do ônibus. Dali tinha a visão do trocador e sua saliente barriga, que pressionava a camisa clamando por liberdade, obrigando os botões a demonstrarem o maior exemplo de resistência e força de vontade jamais vistas, para impedir que as metades frontais do vestuário se abrissem e revelassem ao mundo aquela escultura de júpiter, ou outro planeta, ainda inacabada. O bigode lhe pendia do nariz ocultando seu lábio superior, enquanto era dado ao inferior um maior destaque, sobressaindo um beicinho de bebê.

Nos bancos à sua frente as pessoas faziam do lugar uma mesa de bar, e diversos assuntos eram dispostos ao ar simultaneamente, como uma assembléia que discutisse a pauta em questão, ou uma sessão de júri onde o réu confessa o absurdo crime. À sua volta vão se assentando as pessoas, nunca no banco ao seu lado, sua companhia parecia indesejada. Nem mesmo as velhinhas, de coluna já arqueada, se apossavam daquele local de descanso. As moças bonitas que ele despreza e observa cautelosamente não lhe dão atenção. Seu repúdio por elas é um ato de reciprocidade, pois sempre sonhou com uma bela e popular mulher, que a todos os olhos, masculinos ou femininos, chamassem atenção. Porém Augusto era um estranho rapaz, anti-social e impopular, não muito feio, mas também não bonito, nunca foi capaz de atrair nenhuma delas.

Mas Augusto não mais as olhavam com interesse num relacionamento, tinha ele agora uma namorada. Os olhos que lançavam à essas mulheres apenas tinham a intenção de guardar na memória as suas feições e curvas, para que mais tarde pudesse essa memória satisfazer os seus prazeres solitários. E sua namorada era seu reflexo num corpo de mulher. Impopular e anti-social. Não possuía o corpo que a moda pede, seu sorriso era coisa rara, maquiagem nunca havia em seu rosto. Porém era bela em sua simplicidade. Uma beleza que somente os olhos mais apurados podiam distinguir. Somente os olhos desprovidos da doença social do consumo, que enaltecem muito mais a macieza e suavidade da carne do que aquele monte de músculos, duros como pedra. A sociedade prefere as mulheres que parecem estátuas, rígidas e perfeitamente esculpidas, mas que, tal como as estátuas, exigem um espaço privado, isolado do toque humano, uma paranoica e compulsiva necessidade de segurança para evitar que aquele corpo se quebre.

A sua viagem urbana foi interrompida de súbito por um estrondo à frente. Estrondo esse tão retumbante que superou o volume daquela música horripilante e barulhenta que Augusto ouvia. Dezenas de curiosos, metidos à jornalistas e detetives, se movimentavam dentro do ônibus, na tentativa de desvendar o mais misterioso e recente caso. Augusto, que repudiava também esse tipo de atitude, se julgando superior à aquelas pessoas, se manteve em seu lugar à espera da nova partida do veículo de transporte humano. Os minutos, no entanto, se passaram, e se acumularam rapidamente numa volta frenética, a fim de completarem as sessenta voltas no relógio. E quase cumprida a meta de os minutos de se tornarem hora, seu celular tocou, era Marcela que ligava. E cada vez que tocava o telefone, seu coração se enchia de fúria, pois interrompia aquela horrorosa - porém adorada por ele - música.

- Oi. Disse ele.
- Por que demoras?
- O ônibus parou, suspeito ter havido algum acidente, o que interditou o trânsito da rua.
- Pois bem. Irei até o ponto lhe esperar. Torço para que não demores ainda mais.
- Não. O ônibus deve retomar seu trajeto em breve. Logo estarei aí.
- Então, até logo.
- Até.

E como uma profecia, seu palpite se cumpriu, e em cinco minutos o ônibus recomeçara a se mover. Porém, com quase uma hora de atraso, os passageiros exigiam pressa. O motorista teve a oportunidade de demonstrar sua habilidade na direção do veículo. O ônibus disparou em velocidade, balançando de um lado a outro, chacoalhando os passageiros, derrubando muitos ao chão, uns sobre os outros. O destino de Augusto se aproximava cada vez mais, e ele já podia vislumbrar os poucos metros que o separava de Mar-cela. O ônibus precisou fazer uma curva para tomar o acostamento e parar no ponto. A alta velocidade e a espontânea manobra do motorista desestabilizam o ônibus, e este tombou para o seu lado direito, logo acima das pessoas que o esperavam no ponto.

Com o impacto, Augusto desacordara, e quando recuperou a consciência, percebeu a gravidade do acidente. Muitas pessoas se feriram, inclusive ele, e várias delas o pressionavam contra a janela do ônibus. A janela estava trincada, e lá fora Augusto pode perceber as outras várias pessoas envolvidas no acidente. Estiveram elas esperando o ônibus no ponto, e não pareciam felizes com a sua chegada. Muitos dos corpos eram agora apenas uma massa disforme pintada de sangue. Naquela massa ele pôde distinguir Marcela com a sua cara redonda e os grandes olhos que saltaram das órbitas. Não pôde conter a emoção que lhe tomara naquele momento. Nunca percebeu o quanto era bela aquela mulher. Ou se se tornara bela naquela forma esmagada pelo ônibus. Soube naquela hora, apenas, que se tratava do amor da sua vida. E já sentindo as suas forças se esvaindo e a morte se aproximando, Augusto tomou a imagem daquela figura disforme de Marcela e amou intensamente os últimos instantes de sua vida.

André de Sá

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