sábado, 5 de julho de 2014

O Grande Deus Pã (Segunda Parte)

2 – Memórias de senhor Clarke

Senhor Clarke, o cavalheiro escolhido por doutor Raymond pra assistir à estranha experiência do grande Pã, conjugava em si, de forma bizarra, a prudência e a curiosidade. Friamente julgava o insólito e o excêntrico com total aversão. Mas no âmago do coração germinava um desejo quase inquisitorial de conhecer os mais esotéricos segredos da natureza e do homem. Era esse segundo aspecto que prevalecera no caso de doutor Raymond, pois, mesmo achando que a razão pusera, irremediavelmente, de parte tais sistemas, os arrumando na prateleira da loucura selvagem, ainda conservava, em segredo, certa fé no fantástico, que gostaria de ver confirmado. O horror que presenciara no laboratório não deixara de ser, dalguma forma, salutar. Consciente de sua parte de responsabilidade num assunto pra todo efeito pouco recomendável, deixou de lado, durante muitos anos, de pesquisas ocultas, pra se dedicar inteiramente às verdades do bom-senso. Por questão de homeopatia, verdade seja dita, não deixou de frequentar, durante algum tempo, sessões mediúnicas, na esperança de que os truques dalguns desses cavalheiros lhe provocassem a tão desejada repugnância a tudo quanto dissesse respeito a misticismo. Mas o remédio foi inútil. Clarke sentia continuar vibrando perante o desconhecido e, pouco a pouco, a velha paixão recomeçou a se afirmar, à medida que a imagem de Mary e de seus horrores se apagava da memória.


Ocupado, todo o santo dia, em seus próspero e sério negócio, era na noite que a tentação mais se fazia sentir, sobretudo nos meses de inverno, em que o clarão da lareira fazia dançar as sombras em seu apartamento de solteiro, através do vermelho vivo do bom vinho que repousava a alcance da mão. Então fingia ler o jornal. Mas só a leitura dos cabeçalhos o fazia virar a cabeça, e então seu olhar ardente se fixava sobre um pequeno contador japonês colocado ao lado da lareira. Ainda hesitava um pouco, como uma criança perante o armário de guloseima, mas logo a concupiscência vencia a batalha e Clarke empurrava a cadeira, precipitadamente, acendia uma vela e se sentava diante do armário. As gavetas e compartimentos estavam cheios dos mais diversos documentos sobre os mais mórbidos assuntos. Entre eles repousava um volumoso manuscrito onde reunira as pérolas de sua coleção. Clarke desprezava intensamente a literatura impressa. Em sua opinião a impressão retirava todo o interesse do assunto mais fascinante e fantasmagórico. E seu maior deleite estava exatamente em completar, coligir aquilo a que dava o nome de Memória sobre as provas da existência do Diabo. Quando se dedicava ao trabalho o tempo parecia voar e a noite parecia curta.

Numa feia tarde de dezembro, negra de nevoeiro e coberta de geada, Clarke acabou o jantar e, mal se dignando cumprir o ritual de pegar e largar seu diário, passeou um pouco na sala, abriu a escrivaninha, se imobilizou um instante e se sentou, enfim. Ficou um instante, absorto num de seus sonhos costumeiros e, finalmente, se agarrou ao famoso manuscrito, que abriu numa das últimas páginas. Três ou quatro estavam cobertas pela caligrafia miudinha de Clarke. O título, com letras um pouco maiores, rezava:

Singular narrativa de meu amigo, doutor Philips, que afirma que todos os acontecimento relatados são absoluta e estritamente verdadeiros. Se recusa, no entanto, a revelar os patronímicos das personagens, bem como a indicar o teatro desses extraordinários acontecimentos.

E senhor Clarke leu a história em décima vez, verificando, aqui e ali, as notas a lápis com que acompanhara a narrativa do amigo. Se diga (e era uma particularidade sua) que senhor Clarke se julgava dotado de alguma habilidade literária, que apreciava seu próprio estilo, em que ordenava, dramaticamente, as circunstâncias. Eis o conteúdo do que lia:

As pessoas implicadas nesta narrativa são Helen V... que, caso ainda esteja viva, deve ser agora uma mulher de 23 anos; Rachel M..., já falecida; e Trevor W..., idiota, de 20. Essas pessoas então viviam numa aldeia do País de Gales, que fora uma vila importante no tempo da ocupação romana, agora transformada num vilarejo de 500 ou 600 almas. A aldeia fica numa encosta, a cerca de 10km do mar, e é rodeada por uma vasta floresta.

Há cerca de onze anos, Helen V... chegou a essa aldeia em condição algo particular. Se dizia que, tendo ficado órfã muito cedo, fora adotada por um parente afastado, que a criara até a idade de 13 anos.

Este parente, no entanto, pensava que lhe fariam falta companheiros da idade dela, pelo que, por intermédio dos jornais locais, fez saber que pretendia um bom lar, de preferência numa quinta confortável.

M. R., um gordo proprietário da aldeia, respondeu ao anúncio. Visto que suas referências eram satisfatórias, o cavalheiro não tardou a enviar a filha adotiva, não sem estipular, por carta, que ela teria seu quarto particular e que ninguém precisaria se preocupar com sua educação, já na altura suficiente pra posição que viria a desempenhar no futuro. Mais ainda, senhor M. R. era informado de que deveria deixar Helen à vontade, no que diz respeito a passatempo e ocupação. M. R. A foi buscar na estação, a cerca de 11km, e não parece ter notado algo de especial. Talvez certas reticências relativamente ao passado e ao pai adotivo.

Fisicamente muito diferente dos aldeões, pálida e macilenta, de formas acentuadas e aspecto exótico, Helen se habituou, ao que parece, sem dificuldade, à vida no campo, e cedo se tornou a favorita das outras crianças, que a acompanhavam, frequentemente, à floresta, em seu passeio predileto. A esse respeito M. R. diz que uma vez, tendo reparado que ela saíra pra passear depois do desjejum e só voltara depois do crepúsculo, e inquieto por ela passar tantas horas sozinha e fora de casa, chamou a atenção de seu pai adotivo ao fato. Ele respondeu, com brevidade, que deveriam deixar Helen fazer o que quisesse. No inverno, quando os caminhos da floresta estavam intransitáveis, passava grande parte do tempo no quarto que lhe estava reservado, de acordo com a instrução de seu tutor.

Foi no decorrer dum dos passeios ao bosque, cerca dum ano depois da chegada, que se deu um incidente bizarro, o primeiro duma série. Nesse ano, o inverno fora particularmente rigoroso, a neve caíra com abundância e o gelo tardava a derreter. O verão, ao contrário, fora particularmente quente. Num desses dias ardentes, Helen V... saiu da quinta pra mais uma longa excursão, levando, como sempre, seu lanche de pão e carne. Alguns camponeses a viram tomar a velha via romana, uma calçada cheia de erva, que atravessa a maior parte do bosque, e se admiraram em ela ir sem chapéu, não obstante o extremo calor. Um jornaleiro, Joseph W..., nesse dia trabalhava na floresta, junto da estrada romana. No meio-dia, seu filho Trevor trouxe o almoço, pão e queijo.

Depois de comerem, o garoto, de cerca de sete anos, deixou o pai entregue ao trabalho e, segundo o que, posteriormente, narrou, foi ao bosque procurar flor. O pai, que continuava o ouvindo, feliz da vida à medida que colhia uma e outra flor, trabalhava despreocupado quando, subitamente, ouviu um grito de pavor vindo donde o filho estava. Correu pra o procurar e encontrou o rapaz, que corria de cabeça baixa, apavorado. Interrogado, respondeu que, depois de colher um maço de flor e se sentindo cansado, se deitara sobre a erva e adormecera. De repente algo o despertara. Um barulho singular, uma espécie de canto. Olhando entre os ramos, vira Helen V... brincando na relva com um tipo esquisito, todo nu, que não conseguiu descrever. Sentira tanto medo que desatara a correr, procurando o pai. Joseph W... se pôs a caminho e encontrou Helen V... sentada no meio duma clareira abandonada por carvoeiros.

Encolerizado, a acusou de ter assustado o pequeno mas ela negou tudo e riu muito da história do homem esquisito. História em que Joseph não acreditara muito, se diga, cedo tendo chegado à conclusão de que fora um daqueles terrores inexplicados e súbitos que, às vezes, os pequenos sentem. Trevor, no entanto, se obstinou na história e estava tão angustiado que, enfim, o pai achou melhor o levar até casa na esperança de que a mãe o acalmasse. Durante semanas a criança foi uma fonte de preocupação. Nervosa e estranha, se recusava a sair de casa e na noite acordava os pais gritando O homem da floresta! Papá! Papá!

Pouco a pouco, contudo, tudo isso pareceu ter acabado e, cerca de três meses depois, acompanhou o pai à casa dum cavalheiro, onde ele trabalharia. Tendo Joseph W... sido chamado ao escritório, a criança ficou no saguão. Minutos depois, quando o cavalheiro dava instrução, ouviram um grito estridente e o barulho de queda. Ambos se precipitaram e encontraram Trevor inanimado, no chão, a fisionomia alterada pelo pavor. Chamado com urgência, o médico declarou, após exame preliminar, se tratar duma espécie de ataque, derivado, certamente, de emoção súbita. O levaram a um quarto onde não tardou a voltar a si mas pra passar a um estado a que o médico chamou de histeria violenta.

Recebeu forte sedativo e o julgaram capaz, duas horas depois, de regressar até casa. Ao passar no saguão, no entanto, foi de novo vítima dum acesso de pavor, ainda mais forte que o anterior. O pai da criança reparou que, gritando O homem da floresta!, Trevor apontava a qualquer coisa. Olhou e viu uma grotesca máscara de pedra incrustada na parede acima duma porta. Ao que parece, o proprietário mandara reformar a casa pouco tempo antes e, ao remexerem no alicerce, os operários encontraram essa carantonha de origem nitidamente romana, que foi colocada no saguão. Experientes arqueólogos da região viram nela uma cabeça de fauno, ou sátiro.

Fosse o que fosse, o abalo foi, então, forte demais pro pequeno Trevor, que até hoje sofre retardo mental que deixa entrever pouca esperança. A história fez sensação na época e M. R.... fez um interrogatório fechado a Helen, mas em vão, pois ela continuou negando ter assustado o pequeno, fosse de que maneira fosse.

O segundo incidente em que a jovem tomou parte data de há cerca de seis anos e apresenta aspectos ainda mais inquietantes.

Em 188... no começo do verão, Helen fez forte amizade com Rachel M..., filha dum rico lavrador da vizinhança. Um ano mais nova que Helen, a pequena era mais bonita, não obstante os traços da outra estarem mais atenuados com a idade. As duas amigas inseparáveis contrastavam bastante, uma com tez cor de azeitona e ar de italiana, a outra com proverbiais as faces rosadas de nossas províncias. É preciso ter em conta que as anuidades pagas a M. R... pela educação de Helen eram elevadas, e a aldeia sabia. A opinião geral era a de que ela um dia herdaria uma soma considerável. Consequentemente os pais de Rachel não se opuseram à amizade entre sua filha e Helen. Ao contrário. O que hoje deploram amargamente. Dado que Helen conservara seu amor à floresta, Rachel a acompanhava frequentemente nos passeios. Saíam na manhã e lá ficavam até o anoitecer. Uma ou duas vezes, na sequência dessas excursões, senhora M... achou algo de singular nos modos da filha: Parecia adoentada, sonhadora, diferente do que era, segundo a opinião da mãe. Mas a mudança era tão pouco nítida que ninguém reparou.

Numa noite, contudo, depois de Rachel voltar, a mãe ouviu no quarto algo que lhe pareceu um choro abafado. Entrou e encontrou a filha meio despida, sentada na cama, tomada de indizível angústia. Ao ver a mãe, gritou: Ó! Mama! Por que me deixaste ir com Helen à floresta? Espantada em ver a filha naquele estado, senhora M... a interrogou e Rachel contou uma história terrível. Disse...»

Repentinamente Clarke fechou o livro e virou a cadeira ao fogo. Uma vez que um amigo seu, sentado nessa mesma cadeira, lhe contou essa mesma história, o interrompera nesse mesmo ponto, ou melhor, um pouco a seguir, gritando num paroxismo de pavor:

— Meu-deus! Penses no que dizes! É monstruoso! Coisas como essa nesta nossa terra, onde o homem vive e morre, luta, triunfa, às vezes sucumbe, é vencido pela tristeza e sofre, vítima de estranhos destinos ao longo de vários anos, bem sei! ... Mas isso, Philips, isso não! Se isso pudesse acontecer, este mundo seria um pesadelo!

E Philips continuou contando sua história até o fim:

Sua fuga é ainda um mistério. Desapareceu. À luz do dia. A viram caminhara à pradaria. Segundos depois desaparecera. Sentado junto do fogo, Clarke se esforçava a conceber tamanho absurdo. Seu espírito vibrava, fugia, tremia, invocando as forças misteriosas que podem fazer de nossa carne um triunfo e um trono. Em sua frente se desdobrava o túnel verde do caminho da floresta, descrito pelo amigo. Viu o movimento das folhas e, sobre a erva, a dança das sombras. Viu o Sol e as flores e, ao longe, duas figuras que caminhavam até ele. Uma era a de Rachel. Mas... E a outra?

Clarke fizera o possível pra em nada acreditar. Mas no fim da história lá estava, escrito por seu próprio punho:



Et Diabolus incarnatus est, et homo factus est.*



*E o diabo foi encarnado e o homem concebido

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