segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O Grande Deus Pã (Quarta Parte)

4 – Descoberta na rua Paul
E Villiers foi embora pensando na história das caixinhas chinesas: Um trabalho curioso, de fato.
Uns meses depois do encontro de Villiers e Herbert, senhor Clarke estava, como habitualmente, sentado na sala, após jantar, e se esforçava pra não ir à escrivaninha. Conseguira se manter afastado das Memórias durante mais duma semana, até porque pensava agora conseguir uma reforma total. Apesar das tentativas não conseguia silenciar a curiosidade pelo último caso relatado em seu registro. O expusera, guarnecido por suas próprias conjeturas, ou melhor, o esboçara a um de seus amigos, um homem de ciência, que sacudira a cabeça achando que Clarke era, na verdade, excêntrico. Nessa noite Clarke se esforçava pra racionalizar a história, quando uma pancada na porta o arrancou da meditação.

— Senhor Villiers deseja ver V. Exª
— Á! Villiers! Como és gentil em pensar em mim. Há meses que não te via. Até penso que já faz um ano. Entres, entres. Como tens passado?, Villiers. Precisas dalgum conselho pralguma colocação?
— Não, obrigado. Desse lado tudo vai bem, penso. Não, Clarke. vim, na verdade, te consultar sobre um caso um pouco diferente, de que tive conhecimento há pouco tempo. Temo que o considere absurdo, quando o expuser. Às vezes sou um pouco dessa opinião e é por isso que decidi a vir te ver, sabendo como és um homem prático.
Senhor Villiers ignorava Memórias pra provar a existência do Diabo.
— Bem, Villiers, ficarei muito satisfeito se puder te ajudar. Farei o possível.
Mas qual é o caso?
— Extraordinário, sob todos os pontos de vista. Conheces meus hábitos e sabes que tenho sempre os olhos abertos quando ando na rua e que já tenho dado com casos e costumes bem esquisitos. Mas este supera a todos. Saía do restaurante, numa noite, há cerca de três meses. Jantei bem, bebi uma boa garrafa de Chianti e estava no passeio, olhando dum lado a outro e pensando no mistério que são as ruas de Londres e as pessoas que as freqüentam. Sabes que uma garrafa de vinho encoraja esse tipo de fantasia, Clarke, e ouso dizer que já pensara uma página inteira, de letras bem miúdas, quando fui interrompido por um mendigo que, surgindo atrás de mim, começou as costumeiras lamúrias. Olhei maquinalmente e descobri que o mendigo era, por acaso, o que restava dum velho amigo meu, chamado Herbert. Fiquei espantado ao encontrar naquela miséria e me deu uma explicação enquanto passeávamos pa cá a lá numa dessas ruas sombrias de Sorro. Foi, então, que soube da história. Me disse que se casara com uma rapariga soberba, mais nova alguns anos, e que, segundo sua própria expressão, o corrompera de corpo e alma. Não me quis dar muito pormenor, pretendendo que não o ousava, dado que o que vira e ouvira o perseguia dia e noite. Como eu prestava atenção a fisionomia percebi que falava verdade. Tinha algo que me arrepiou. Não sei o motivo. O mandei embora com algum dinheiro. Te dou minha palavra-de-honra que depois da saída tive de me esforçar pra respirar. Sua presença me gelara o sangue.
— Isso não será um pouco fantasioso?, Villiers. Suponho que tendo feito um casamento imprudente as coisas terão, talvez, entortado. Usando uma linguagem vulgar.
— Então ouças o resto da história.
E Villiers contou a Clarke o que Austin lhe dissera.
— Como vês, não resta dúvida. E esse senhor Blank, seja lá quem for, morreu de medo. Deve ter visto tamanha coisa naquela casa, que o coração parou instantaneamente. E foi lá, nesse número 20, que por qualquer razão tinha tão má reputação no bairro, que viu o que viu. As casas são suficientemente velhas, nesse bairro, pra se tornarem sórdidas e tristes, mas daí a serem estranhas... Pelo que pude saber, são todas alugadas por apartamento, com ou sem mobília. Cada porta tem três campainhas, salvo raras exceções. Alguns rés-do-chão foram transformados em loja. Uma rua triste, sob todos os aspectos.
— Tendo sabido que o número 20 estava pra alugar, fui ao agente e pedi a chave. Como é natural nem me teriam falado dos Herbert mas perguntei, descaradamente, ao homem há quanto tempo tinham deixado a casa e se, entretanto, já houvera mais locatário. Me olhou duma forma esquisita, me dizendo que os Herbert partiram a seguir ao que chamou os problemas e que, desde então, a casa estivera devoluta.
Villiers se calou uns instantes, e continuou:
— Sempre fui maluquinho por casas vazias. Há como um fascínio na tristeza
dos quartos abandonados, nos pregos das paredes, na poeira em volta dos vidros. Mas o número 20 da rua Paul não me agradou. Ainda não pusera o pé no corredor quando senti uma impressão singular e pesada, causada pela atmosfera. É verdade que todas as casas vazias cheiram a mofo ou a algo do gênero mas neste caso era algo diferente que não sei descrever. Parecia ter a respiração paralisada. Percorri as divisões da frente e do fundo. Na cave tudo estava sujo e poeirento também, se e sentia algo que não sei definir. Havia, sobretudo, uma sala do primeiro andar, que era a pior, uma divisão espaçosa que outrora deve ter sido muito alegre mas quando lá estive, tudo, pintura, papel, era tão lúgubre. E a sala estava repleta de horror. Mal toquei a maçaneta pra abrir e senti logo os dentes batendo. Assim que entrei estive a ponto de desmaiar. Consegui me dominar, no entanto, e, encostado à parede, me perguntei o que poderia estar ali, que me fazia bater o coração e tremer as pernas como um homem que vai morrer. Atirado a um canto estava um monte de jornais em desordem, aos quais dei uma olhada. Eram jornais velhos, com três ou quatro anos, alguns meio esfarrapados, outros amarrotados, como se tivessem servido pra embrulhar alguma coisa. Revolvi os jornais e, sob tudo aquilo, encontrei um curioso desenho. Mostrarei a ti. Um desenho cuja visão bastante me impressionou. Não agüentei mais e fiquei satisfeito em conseguir chegar são e salvo até cá fora. Na rua as pessoas olhavam a mim e houve uma que disse que eu devia estar bêbado. De fato, andava dum lado ao outro da calçada, em zigue-zague. Tudo o que consegui fazer foi entregar a chave ao agente e voltar até casa, onde fiquei de cama oito dias com aquilo que o médico classificou de abalo nervoso e embaraço. Então aconteceu que, uma vez, ao ler um jornal vespertino, reparei num pequeno título, que dizia: Morto de fome. A notícia contava a história habitual: A hospedaria em Mary lebone, a porta fechada a sete chaves e enfim arrombada, um homem morto numa cadeira.
— O defunto, dizia a notícia, era conhecido pelo nome de Charles Herbert e se crê que foi um rico cavalheiro da província. Seu nome foi famoso há cerca de três anos, quando da morte misteriosa da rua Paul, travessa Tottenham. Na ocasião Charles Herbert era o locatário do número 20 e em seu pátio foi encontrado morto um cavalheiro muito rico, em circunstância que não deixava margem a dúvida.
— Um fim trágico. Não é verdade? Apesar de tudo, se o que me disse é verdadeiro, e tenho a certeza, toda sua vida foi uma tragédia mais emocionante que as representadas no palco.
— E eis a história. Não é verdade? — Perguntou Clarke, com ar sonhador. — Eis a história.
— Pois bem, Villiers. Na verdade não sei muito bem o que dizer. Há, sem dúvida, pontos que parecem singulares. A descoberta do cadáver no quintal de Herbert, por exemplo, e a espantosa opinião do médico sobre a causa dessa morte. Por outro lado, tens de concordar que os fatos também são explicáveis naturalmente. Quanto a tua sensação ao visitar a casa, posso assegurar que se devem a uma imaginação muito viva. Devias estar, inconscientemente, matutando no que disseram a ti. Não vejo muito bem que se possa fazer afirmação peremptória com base em tudo isso. Supões que nisso tudo há um mistério mas Herbert está morto. Em que direção te propões dirigir o inquérito?
— Me proponho procurar a mulher que se casou consigo. Ela é o mistério. Os dois homens ficaram sentados, silenciosamente, diante do lume. Clarke se felicitando por ter sido o advogado do bom-senso e Villiers mergulhado em suas tenebrosas fantasias.
— E se eu fumasse um cigarro? — Disse Charles, levando a mão ao bolso, procurando a cigarreira.
— Á! — Exclamou Villiers, com um sobressalto — Já me esquecia ter algo pra te mostrar. Te lembras do desenho que te disse ter encontrado no meio dos jornais, na casa da rua Paul? Está aqui!
Villiers tirou do bolso um pacotinho fino, coberto de papel castanho e atado com um cordel de nós complicados. Mau-grado seu, Clarke começava a se sentir curioso e se debruçou a diante, enquanto Villiers desfazia os nós com dificuldade, desdobrando, em seguida, o primeiro envelope. Havia um segundo, em papo que Villiers abriu, depois do que estendeu a Clarke um pequeno papel.
Durante mais de cinco minutos se fez um silêncio de morte na sala. Os dois homens ficaram tão calados que se ouvia o tique-taque do velho relógio da sala ao lado, e, no pensamento dum deles, esse ruído baixo e monótono despertou uma longínqua recordação, enquanto olhava, com atenção, a pequena cabeça desenhada a pena, que Villiers lhe dera. Era a obra dum artista, executada com esmero. A alma da mulher parecia nos fixar através dos olhos, os lábios divididos por um estranho sorriso. Clarke olhava aquele rosto e, do indistinto passado, relembrou uma longínqua tarde de verão. Tornou a ver aquele comprido e simpático vale, o sinuoso rio correndo entre as colinas, os prados e os campos de trigo, o brilho sombrio do sol, o nevoeiro branco e frio que se elevava da água. Uma voz lhe dizia, através do fluxo duma multidão de anos: Clarke, Mary verá o Grande Pã! E eis que se encontrava ao lado do doutor, escutando o pesado tique-taque do relógio, olhando a forma estendida sobre o sofá verde, à luz da lâmpada. De novo Mary se levantava e, ao olhar em seus olhos, sentiu que o coração arrefecia:
— Quem é essa mulher? — Perguntou, com a voz seca e rouca.          
— A mulher que se casou com Herbert.
Clarke olhou mais uma vez o desenho. Bem vistas as coisas, nem se tratava de Mary, se bem que o rosto fosse o seu. Mas havia mais, algo que não descobrira nos olhos quando, vestida de branco, entrara ao laboratório, nem no terrível despertar, quando a vira na cama, fazendo careta. Algo, talvez o brilho dos olhos, o sorriso dos lábios carnudos, a expressão de todo o rosto. Clarke sentiu um arrepio na alma e pensou nas terríveis palavras de doutor Philips: A mais viva personificação do mal que já vi. Virou maquinalmente o papel e olhou o reverso:
— Meu Deus, Clarke, o que está acontecendo? Estás pálido como a morte. Enquanto Villiers se levantava, bruscamente, da cadeira, Clarke se afundou no sofá, com um gemido, deixando o papel escapar das mãos.
— Não me sinto muito bem, Villiers. Sou um bocado atreito a estas crises. Me
dês um pouco de vinho. Obrigado, deve chegar. Ficarei bom em poucos minutos.
Villiers apanhou o papel e o virou, como vira Clarke fazer:
— Á! , viste isto? Foi o que me permitiu identificar a mulher de Herbert, ou melhor, sua viúva. Te sentes melhor?
— Sim. Obrigado. Foi só uma fraqueza passageira. Não sei se estou compreendendo bem teu pensamento. O que te permitiu identificar o retrato?
— Este nome, Helen, escrito nas costas. Não te disse que o nome era Helen?
Sim, Helen Vaughan.
Clarke gemeu. Não tinha dúvida. Disse Villiers:
— Me digas se estás de acordo comigo. Se a história que te contei e o papel dessa mulher não têm aspectos curiosos!
— Sim, Villiers. É uma estranha história. Realmente muito estranha. Me dês algum tempo pra refletir. Talvez possa te ajudar. Não sei. Te retirarás? Então boa noite, Villiers. Passes bem. Voltes daqui a uma semana.

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