sábado, 19 de julho de 2014

O Grande Deus Pã (Terceira Parte)

3 – A cidade da ressurreição

— Herbert! Meu-deus! Será possível?
— Na verdade, meu nome é Herbert. Também me parece que te conheço mas não me lembro de teu nome. Tenho, mesmo, uma memória esquisita.
— Não te lembras de Villiers?, de Wadham.
— É verdade! Pois é! Peço imensa desculpa, Villiers. Nunca me ocorreria pedir esmola a um camarada de colégio. Boa noite.

— Meu querido amigo, não tenhas tanta pressa. Meu apartamento fica a dois passos daqui. Não queres ir até lá? Íamos no caminho mais comprido, na avenida Shaftesbury ! Por amor-de-deus! O que te fez chegar a este ponto?, Herbert.
— É uma história comprida, Villiers. Estranha, também. Mas, se quiseres, contarei.
— Está bem. Me dês o braço. Me parece que estás um bocado fraco. Os dois companheiros, um vestido de inquietante e sujo andrajo, o outro com a elegância do citadino rico, subiram lentamente a rua Rupert. Villiers acabava de sair de seu restaurante, depois dum excelente jantar de vários pratos, pesado pelo conforto do Chianti com que regara a refeição. Com seu velho bom humor, se demorara um pouco à porta, olhando a ruas surdamente iluminadas, esperando aqueles incidentes ou misteriosas personagens, frequentes em Londres toda hora e em toda parte.

Villiers se considerava um exímio explorador dos desvios e labirintos da vida londrina, um tipo de caça desinteressada em que investia uma atividade digna de objetivos mais elevados. Era com esse espírito que se conservava junto do candeeiro, espreitando os passantes com uma curiosidade que não tentava disfarçar. E, com aquela gravidade somente conhecida dos jantadores sistemáticos, enunciara a si próprio o seguinte aforismo: Chamaram Londres a cidade do encontro. Deviam ter chamado a cidade da ressurreição. E foi então que seu pensamento foi interrompido por um queixume próximo, um doloroso pedido de esmola.

Olhou ao lado, um pouco irritado, e teve um sobressalto ao encontrar a prova encarnada das suas teorias: Mesmo a seu lado, alterado e desfeito pela miséria, miseravelmente coberto de andrajo, estava seu velho amigo Charles Herbert, antigo colega. Ontem sábio, hoje louco. Ocupações diferentes e interesses divergentes interromperam essa antiga amizade. Havia seis anos que Villiers não via Herbert. contemplava aquela ruína humana com uma tristeza mista de concupiscência de saber o que o levara àquele ponto. A piedade não destruía nele o prazer do caçador de mistério e se congratulava por seus sonho de raciocínio à
porta do restaurante.

Deram alguns passos em silêncio enquanto mais que um passante se voltava, espantado, perante o insólito espetáculo que constituía esse homem bem-vestido, em cujo braço pendia um declarado mendigo. Vendo isso Villiers se enfiou numa rua escura de Sorro. Ali repetiu a pergunta:

— Como raio isso aconteceu?, Herbert. Sempre pensei que te beneficiarias de ótima situação no Dorsetshire. Teu pai te deserdou? Certamente que não!
— Não, Villiers. Herdei logo após a morte de meu pobre pai, que morreu um ano depois de minha saída de Oxford. Foi um pai muito bom e meu luto foi sincero. Mas sabes o que são os jovens: Meses depois vim à cidade e comecei a frequentar a vida mundana. Tinha excelente recomendação e consegui me distrair sem muito problema. Na verdade joguei um bocado mas nunca grande soma. E as poucas apostas que fiz em corrida até me deram algum ganho, algumas libras pros charutos e coisas do gênero. Em minha segunda temporada é que o vento mudou. Ouviste falar, com certeza, de meu casamento.

— Nunca alguém me falou em tal coisa!
— Me casei!, Villiers. Conheci, em casa duns amigos, uma jovem da mais maravilhosa e envolvente beleza. Não posso dizer qual a idade, pois nunca soube, mas, segundo meu cálculo, teria, quando a conheci, uns dezenove anos. Meus amigos a conheceram em Florença. Se apresentou como órfã, filha de pai inglês e mãe italiana, os e encantou, como me encantaria. A vi em primeira vez numa festa. Falava com um amigo, junto duma porta, quando, subitamente, sobre o murmúrio das conversas, se elevou uma voz que foi direto ao coração. Cantava um romance italiano. Fui apresentado nessa mesma noite e três meses depois me casei. Villiers, essa mulher, se podemos chamar mulher, corrompeu minha alma. Na noite de nupcia fiquei sentado, no quarto do hotel, a ouvindo falar com aquela voz maravilhosa. Falava sobre coisas que eu não ousaria murmurar na mais negra noite, na mais vasta solidão. Villiers, pensas que conheces a vida, Londres, e o que se passa nesta cidade de horror. E se calhar já conversaste amenamente com os piores celerados. Mas te digo que não fazes ideia do que sei. Não, teus sonhos mais fantásticos e escondidos nunca poderiam engendrar sombra daquilo que ouvi e vi. Vi, sim. Vi as coisas mais incríveis. Tão incríveis que, às vezes, no meio da rua, parava pra pensar como era possível visto e continuar vivo. Passado um ano, Villiers, eu estava arruinado, de corpo e alma... De corpo e alma!
— E tuas propriedades?, Herbert. Tinhas terra em Dorsete.
— Vendi. Terras e florestas. Minha querida casa... Tudo...
— E o dinheiro?
— Ela o levou.
— E te deixou assim?
— Sim. Numa noite desapareceu. Não sei aonde foi mas tenho certeza de que se a visse morreria. O resto de minha história não tem interesse: Sordidez e miséria. É tudo. Villiers, pensas que exagero mas olhes que te contei nem metade do que se passou. Podia tentar te convencer. Só que nunca mais terias uma hora de felicidade até o fim de teus dias. Te tornarias, como eu, um fantasma, um homem que viu o Inferno. 

Villiers levou o desgraçado até sua casa, onde mandou lhe servirem jantar. Mas ele comeu pouco, quase não tocou o vinho e pareceu aliviado quando, depois de ficar sentado ao lume, sombrio e silencioso, Villiers o deixou ir embora com algum dinheiro.

— Uma coisa, Herbert: — Perguntou Villiers quando se separaram — Como se chamava a mulher? Disseste Helen... Helen de quê?
— A chamavam, quando a conheci, Helen Vaughan. Mas não sei o verdadeiro nome. Não penso que o tivesse. Não. Não é o que estás pensando. Só os seres humanos têm nome, Villiers, e não posso dizer mais. Boa noite. Não. Não deixarei de passar aqui se precisar de tua ajuda. Boa noite.

O homem se afastou noite adentro e Villiers voltou junto ao fogo. Havia algo em Herbert que causava impressão indizível. Não era o farrapo nem os estigmas que a miséria lhe imprimira no rosto mas um pavor indefinível, suspenso como uma névoa. Ele próprio reconhecera não estar limpo de falta e que Helen o corrompera de corpo e alma. Villiers tinha a impressão de que o cenário no qual esse homem outrora seu amigo atuara era inexprimivelmente criminoso. E sua história não precisava ser confirmada. Ele próprio constituía a prova. Villiers sonhava com a história que acabara de ouvir, se perguntando se a ouvira até o
fim: 

— Não. Até o fim, não. Só o princípio. Uma história dessa é como aquelas caixinhas chinesas: Se abre uma dentro da outra e se encontra tarefa cada vez mais bizarra. É possível que o pobre Herbert seja apenas uma das caixinhas exteriores: Ainda falta abrir caixas muito mais estranhas. 

Villiers não conseguia esquecer Herbert e sua história cujo horror parecia ficar mais espesso ao avançar da noite. O fogo enfraquecia e o ar gelado da manhã penetrava no apartamento. Villiers se levantou, olhou por cima do ombro e, estremecendo um pouco, se enfiou na cama.

Dias depois encontrou, em seu clube, um cavalheiro chamado Austin, um amigo que era famoso por conhecer de ponta-a-ponta a vida brilhante e tenebrosa de Londres. Ainda matutando sobre o encontro de Sorro, Villiers pensou que talvez Austin pudesse esclarecer um pouco a história de Herbert. Depois dalgumas frases banais perguntou de chofre:

— Por acaso ouviu falar, duma maneira ou doutra, dum tipo chamado Charles Herbert?

Austin se virou bruscamente e olhou, surpreso, a Villiers:

— Charles Herbert? Não estavas na cidade há três anos. Não ouviste falar no caso da rua Paul? Na altura, foi uma sensação.
— Que história foi essa?
— Eis: Um cavalheiro muito rico foi encontrado morto perto duma casa da rua Paul, mais ou menos onde se cruza com a travessa Tottenham. Naturalmente, não foi a polícia que o descobriu. Passes a noite com a luz acesa e virás logo um policial bater à porta mas quem é que quer saber se alguém estiver estendido à porta de qualquer pessoa? O deixai estar. Nessa ocasião, como noutras, o alarme foi dado por uma espécie de vagabundo. Não estou falando dum mendigo nem dum gatuno. Sabes: Um daqueles cavalheiros que, movido pelo negócio ou pelo prazer, passeia na ruas de Londres às cinco horas da manhã. Esse indivíduo, ao que declarou, voltava até casa, se bem que nunca se percebeu muito bem donde vinha nem aonde ia nem por que passava na rua Paul entre as quatro e as cinco da manhã. Não sei o que o fez espreitar o número 20. Disse algo absurdo a respeito da casa ter a fisionomia mais desagradável que já vira. De qualquer forma foi espreitar o pátio. E, pra seu espanto, viu um homem estendido no chão. Uma perna aqui, outra ali, de costas. Nosso cavalheiro achou a cara do homem singularmente fantasmagórica, ao que começou a correr, procurando o primeiro policial. O guarda não levou a coisa muito a sério, a princípio, pensando se tratar de história de bêbado. Mas foi até lá e, quando viu a cara do homem, mudou logo de tom. O pássaro madrugador que descobrira aquele lindo presente foi mandado procurar um médico, enquanto o guarda se agarrou à campainha e ao batente, até que chegou uma criada muito suja e meio dormente. Mostrou o que estava no pátio e ela começou a gritar e a pôr toda a rua em polvorosa. Mas ela nada sabia a respeito do senhor, nunca o vira na casa, etc... Entretanto chegou o cavalheiro com o médico e nada mais havia a fazer além de entrar no pátio. Foi aberta a porta, todo o quarteirão aproveitou pra entrar também, e assim se apagaram todas as pistas que poderiam existir. O doutor só precisou dum momento pra declarar que o pobre-diabo estava morto há várias horas, e o fez transportar ao posto. Aqui a história se tornou interessante. O morto não fora roubado e num dos bolsos estavam papéis que o identificavam como sendo... Em suma: Um homem rico e de boa família, muito considerado na sociedade e de quem não se conhecia inimigo. Não digo o nome, Villiers, porque nada tem a ver com a história e porque não é bom remexer em história de morto com parente ainda vivo. O mais curioso, depois, é que os médicos nunca chegaram a acordo sobre a causa da morte. Havia ferida nos ombros do cadáver, como se alguém o tivesse empurrado com violência pela porta da cozinha e arrastado escada abaixo. E não, como parecia, atirado pela janela. Mas não apresentava sinal de violência suscetível de provocar a morte. E a autópsia não revelou traço de veneno. Naturalmente a polícia quis saber sobre os habitantes do número 20 e nesse ponto o soube de fonte privada. Apareceram dois ou três pormenores curiosos.

— A casa era habitada pelo casal Herbert. Ele, ao que se dizia, rico proprietário. Houve até quem dissesse que a rua Paul não era, propriamente, o lugar onde se fosse procurar a aristocracia terra-tenente. Ela, ninguém parecia saber quem fosse, nem o quê. Aqui, entre nós, estou convencido de que os que procuraram mergulhar em sua existência nadaram em água bem turva. É evidente que ambos negaram saber fosse o que fosse sobre o defunto, pelo que, por falta de prova, foram mandados embora. Mas vieram à baila coisas muito estranhas.

— Apesar de serem só cinco ou seis horas da manhã quando o cadáver foi levado, a multidão se acumulara e a maior parte dos vizinhos acorrera pra ver o que se passava. Se mostraram extremamente liberais, a todos os níveis, nos comentários que faziam. Definitivamente, o número 20 tinha má fama no bairro. Os detetives tentaram apurar alguns fundamentos mais sólidos de todos esses rumores mas não conseguiram. As pessoas abanavam a cabeça e franziam o sobrolho. Achavam que os Herbert eram bizarros, preferiam não frequentar a casa, etc, mas nada de tangível. As autoridades estavam moralmente convencidas de que o homem morrera, fosse de que maneira fosse, na casa dos Herbert, tendo sido, em seguida, deitado pela porta da cozinha mas nada puderam provar e não havia traço de violência ou de veneno que sustentasse essa opinião. Uma história estranha. Não é verdade?

— Ainda há uma coisa curiosa da qual não te falei. Por acaso, eu conhecia um dos médicos consultados sobre as causas da morte e tempo depois do inquérito o encontrei e interroguei sobre o assunto. Lhe perguntei: Me garantes que foste ultrapassado pelo caso, que até hoje não sabes de que o homem morreu?

— Desculpes. Sei perfeitamente o que matou Blank: Angústia, pavor, desespero. Nunca, desde que sou médico, encontrei feição de tal modo convulsa. E olhes que já olhei bem a cara dum exército de defunto. 

— Esse médico era um indivíduo de sangue frio. Eu o conhecia bem, de modo que a veemência de seu modo me impressionou bastante. Mas não consegui saber mais. Penso que o ministério público não conseguiu arranjar maneira de perseguir os Herbert por terem assustado um homem até a morte. Ao menos nada fizeram e o caso foi esquecido. Sabes algo sobre Herbert?

— Mas — replicou Villiers — andamos juntos no colégio.
— Não posso crer. E a mulher: A viste alguma vez?
— Não. Nunca. Deixei de ver Herbert há alguns anos.
— É curioso. Não? Nos separarmos dum colega à porta dum colégio, não ouvirmos falar dele durante anos e o encontrar nesta circunstância. Pessoalmente, gostaria de ver senhora Herbert. Contam coisas a seu respeito...
— Que coisas?
— Por minha fé, não sei muito bem como dizer. Todos os que a viram na delegacia afirmam nunca ter encontrado mulher tão bela e tão repugnante. Falei com um deles, e olhes que se arrepiava só em a descrever. Tudo isso foi uma espécie de enigma e penso que se o morto tivesse podido contar algumas histórias elas teriam sido bem estranhas. E há ainda outra meada a desenrolar: O que faria um respeitável cavalheiro rural como senhor Blank (o chamaremos assim, se não te importas) nesse duvidoso apartamento número 20? É mesmo um caso misterioso. Não achas?

— Sim, Austin. Um caso misterioso. E olhes que nunca pensei que, ao te interrogar sobre meu antigo condiscípulo, malhasse em semelhante ferro. Mas tenho que ir embora. Boa noite.

Nenhum comentário:

Postar um comentário