sábado, 11 de janeiro de 2014

A Caçada


Era mania minha sair para caçar na mata atrás da fazenda de Seu Nonato, a fazenda Beira do Mato. Dia e noite eu caçava os mais variados animais da floresta. Por prazer ou para comer. Vivia no mato, do mato e para o mato. Eu e minha espingarda. Sozinho eu não ficava, no mato tenho companhia de bicho, de água fresca, de terra fria e de muitas árvores. De gente raramente. Tão raro as caçadas feitas em companhia de homem que eu trazia todas elas na memória. A minha última é aquela que as lembranças se fazem presente em todos os meus sonhos e pensamentos. Três dias com Casemiro no mato caçando uma onça.

– Onça excomungada, onde foi que se meteu?
– Como foi que perdeu o rastro do bicho, Jânio?
– Onça é bicho esperto, quando vê perseguidor logo muda de direção, circunda e some para algum lugar.
– Preferia que fosse você o bicho esperto. Homem ser enganado por animal que é coisa absurda de se ver.
 
Casemiro era assim, homem desses mandões, rabugentos que dá queixa de tudo sem dar um braço em auxílio. Um imperador é o que era. Cadê sua coroa, Senhor Imperador Casemiro? Não tem, imperador coisa nenhuma. Apesar da arrogância era boa companhia para caçar. Tinha bom olho, raramente errava um disparo. Ele e a espingarda eram um só. Um dia errou. A gente na mata, caçando furão, foi quando ouvi o tiro. Não vi quando disparou, estava procurando o bicho, o estrondo é que acusou disparo.

– Pegou? Cadê?
– Atirei atoa, para fazer barulho. Não suporto mais esse silêncio, queria ter certeza de que não ficara ensurdecido.

Que silêncio se a mata tem música própria? Se não é a passarinhada a cantar num coro disforme é o mico a guinchar ou o zunzum das abelhas. O riso alegre do riacho a correr. A natureza tem sua própria melodia harmoniosa. Até o farejar dos cachorros rompiam o silêncio. Tiro não se fazia necessário além de espantar a caça. Era mentira do Casemiro, eu vi o buraco do chumbo ali no chão, bem na margem do riacho servindo de companhia para a noz partida mordiscada. Tentou pegar o furão enquanto comia, errou e o danado correu afugentado. Não confessou o erro, nunca confessa. Mas agora não pode errar, a caça é a onça. Um dia é da caça o outro é do caçador. Caça e caçador invertidos na realidade. Tiro mal dado e a onça é que faz de nós a sua caça.

O primeiro dia inteiro na mata e nem a sombra da onça foi vista. Ao anoitecer levantamos acampamento e nos sentamos com a fogueira interposta ente nós e as barracas. Nessas horas Casemiro emudece, desaprende a falar. Vira um fantasma do meu lado, daqueles que a gente vê, mas desacredita por não ouvir ruído algum. Uma imagem sem som, feito a nuvem lá no céu que corre silenciosa. Assim ficou a noite toda. Nem “boa noite”, nem “durma com deus”. E é de noite no mato que a gente sente a falta da companhia de uma voz humana. Todos os olhos da mata nos vigiando os movimentos e nossos corpos com a carne arrancada. Os olhos nos penetravam a alma e liam nossos pensamentos. No calar da noite quem faz música é o grilo. A escuridão densa e pesada esmaga, a solidez da pretura do ar transforma o bravo homem em menino encurralado pelo medo. Em todas as noites que eu passava na mata sentia um olhar desconhecido, não de bicho nem anjo da guarda. Era um olhar vigilante e silencioso. Não eram os olhos brilhantes da mata que me olhavam, pois o próprio negrume da noite me impunha seus olhos. Essa desconfortável situação me levava a deitar logo cedo. Dormir era custoso, somente depois que os olhos vigilantes se fossem.

De manhã cedinho é que levantávamos. Água fria do riacho no rosto, uma fruta bem fresquinha e tudo pronto para a caçada. Eu chupava ainda uma rapadura que era para dar vigor. Pé no mato e mais um dia de caçada. Cadê a onça? Para cá que veio, para o mato. Raimundo mesmo que viu quando a besta atacava o gado lá na fazenda.

– Cês carecia de ver, tava ali perto da cerca. Quase que pega a estrela, tadinha. Se não fosse pelo tiro que soltei pro alto o bicho tinha jantado a vaquinha. Correu adoidado pro meio do mato, ainda deve de ta lá.

Raimundo poderia ter acertado a onça se não fosse um preto medroso. A mão trêmula não permitiria um disparo certeiro. Homem nessas horas precisa ser frio. E frio como a geada nós nos dirigimos para a mata. Só eu e Casemiro, Raimundo ficou na fazenda. Tão logo o rastro fresco da onça se fez visível. Somente o rastro, o bicho era esperto, não se mostrava.

Dois dias na mata e nem sinal da onça. Raimundo tinha descrito o bicho: amarela, cabeça grande feito homem, manchas pretas pelo corpo. Onça pintada. Nunca cacei. Casemiro diz ter caçado algumas, mas eu não acredito. História de pescador... de caçador, no caso. O rastro do primeiro dia desaparecido. Bicho esperto. Já estava desesperançado. E para piorar, cadê o Casemiro? Sumiu. Agora além de onça tenho de caçar meu companheiro. O dia se arrastou longamente até o cair da noite e na escuridão novamente não encontrei companhia, nem mesmo do fantasma do Casemiro como na noite anterior. Novamente os olhos em cima de mim. Até quando? Não sei. A fogueira lá fora se pôs a bruxulear com o repentino sopro da floresta. A ventania fazia balançar a cabana e o assobio do vento me arrepiava a espinha. O cachorro se pôs a ladrar e depois a choramingar. Desprendeu-se da corda que o mantinha preso e fugiu na escuridão da noite. E Casemiro? Poderia estar em pior situação. Como se perdeu eu não sei, mas sumiu sem deixar rastros, como aquela onça desgraçada. Não fosse por ela estaria agora no aconchego da minha cama. Mas não posso voltar sem antes vê-la morta e, consequentemente, a fazenda em segurança. Tentei dormir, mas o sono não veio. Senti uma presença de fora da cabana, mas nas vezes que botei a minha cabeça para fora não vi ninguém. E foi rezando que passei toda a noite.

O terceiro dia chegou e eu cismei de que deveria encontrar Casemiro primeiro. Por isso retornei ao local de onde nos perdemos e me pus a procurar por rastros. Não muito tempo demorei para encontrar pegadas de homem na lama à beira do riacho. Segui as pegadas por centenas de metros num caminho tortuoso mata adentro e para o interior da mata elas me levaram. No decorrer do caminho se tornou visível outro rastro que a princípio julguei ser interposto também por Casemiro. Mas era menor no tamanho acusando ser rastro de uma segunda pessoa. As duas trilhas ora estavam dispostas progressivamente em uma direção certa e clara, ora um sol com os seus raios irradiando do centro levando a distintas trilhas em diferentes direções. Todas as trilhas eu segui até que da árvore um corpo pesado se abateu sobre mim e tão logo um abraço poderoso envolveu minha perna direita e meu abdome. Uma enorme sucuri se enroscava em meu corpo enquanto eu resistia numa luta feroz. Não conseguia alcançar meu facão que caiu da minha mão a poucos metros do meu local de combate. O revólver preso pela cobra na algibeira. Teria que tentar um tiro com a espingarda na cabeça do animal que chegava já no meu peito. Se errasse a mão o tiro acertaria a mim a queima-roupa, mas era a única coisa a se fazer. Levei a mão às costas buscando alcançar a espingarda quando a cobra prendeu o meu braço esquerdo e apertou firme meu peito me tirando todo o fôlego. Não podia respirar, a cabeça zonza girando... e lá adiante estava o fantasma do Casemiro com a espingarda na mão. Era o fantasma silencioso, só imagem, como se mostrava durante a noite. Sua espingarda também fantasmagórica exalava uma fumaceira como acusando um disparo silencioso. Nada fazia som, nem meu coração, talvez porque já não mais batesse. E então a pressão cedeu e o ar se fez odorífero a minha volta. Eu estava banhado em um líquido pastoso e fedido. Aquele corpo de cobra foi separado do meu e eu pude ver que no lugar onde ficava a cabeça do animal havia agora uma massa horrenda de forma indefinida.

– Passou maus bocados longe de mim, Jânio?
– Casemiro, onde foi que se meteu e como foi que me encontrou?
– Eu estava logo atrás de você no mato, daí você sumiu. Fiquei horas te procurando em vão. Eu é que te pergunto onde tivera se metido. Como te encontrei eu posso explicar. Depois que você desapareceu, eu acampei e esperei a noite passar. Logo de manhã procurei pelos seus rastros e pensei ter descoberto. Era um rastro que levava para o interior da mata e julguei muita imprudência da sua parte ter-se dirigido tão adentro em ausência de companhia. Porém era o único rastro e me dispus a segui-lo. Depois de caminhar por muitas horas seguindo o rastro é que me dei conta de que meu cantil se encontrava completamente seco, e que o riacho muito atrás de mim faz uma curva para fora da mata. Resolvi voltar para conseguir água e também por ter perdido o rastro a certa altura. Enquanto eu regressava ao riacho me deparei com seus gritos e percebi seu apuro com a cobra. Peguei a espingarda e com um tiro só acertei a cabeçona do animal.
– Devo-lhe a vida.
– Deve-me uma onça.
– Encontrou algo a respeito?
– Coisa alguma, essa onça deve ter evaporado.
– E sobre o rastro que encontramos?
– Olha Jânio, não somos os únicos homens nessa mata. O rastro está bem fresco e leva para o interior onde a mata é mais fechada.
– Ontem mesmo senti alguém de fora da cabana, pensei que fosse você Casemiro, mas não vi ninguém.
– Isso foi a sua imaginação, desde criança assim com fantasias na cabeça.
– Fantasia ou não a gente tem outra companhia nesse mato.
– Exatamente, além de onça teremos que caçar homem também.

Recuperei meu facão e as minhas forças e resolvemos seguir o rastro de homem porque o da onça só Deus sabe encontrar. Já era noite quando resolvemos parar para comer e levantar acampamento. A mata se adensou não permitindo uma barraca tão próxima da outra. Logo cedo adormeci, ignorando os olhos que novamente se punham sobre mim. Sonhei um sonho com a onça que vinha me devorar na mata. Acordei ouvindo o som de um grunhido que julguei ser memória do meu sonho até que Casemiro botou sua cabeça para dentro da minha barraca me chamando para fora. Peguei o meu lampião e o acendi me dirigindo para fora da barraca.

– A onça, Jânio! Pega a espingarda.

Peguei a espingarda e fui seguindo Casemiro que se adiantou no caminho beirando o barranco. Estava tão escuro que somente enxergava o chão onde pisava iluminado pela luz fraca do lampião. Mais uma vez um grunhido e eu podia claramente distinguir sua direção. Caminhamos alguns metros até que Casemiro parou bruscamente com os olhos fixos num ponto adiante, e com dificuldade eu podia notar uma mancha amarela que se movia sobre um tronco de árvore seca e retorcida arrancada do chão. Espingardas na mão e já preparava o disparo quando um assobio cortou o silêncio abruptamente. O animal virou-se para a direção do som agudo e saiu em disparada antes de qualquer reação minha ou de Casemiro. Perdemos a preciosa chance neste inesperado encontro com a onça devido ao assobio de um homem que se encontrava próximo. Casemiro pegou o lampião e dirigiu-se à direção tomada pela onça que era a mesma do assobio. Eu pus-me a segui-lo. O amanhecer não demoraria a chegar e nosso caminho nos levava numa íngreme subida. Lá no alto uma figura nos aguardava com a onça rondando seu corpo. Não era homem como imaginávamos, mas uma criatura supostamente saída de uma fábula encantada. O cabelo de fogo, a cara de menino, os pés virados traziam os calcanhares à frente de forma estranhamente contrária aos nossos. Com os olhos nos censurava. O pavor tomou conta de mim. Casemiro tentou um disparo. A espingarda mascou. Seu lampião se apagou.

– A caça terminou para vocês. Retornarão às suas casas e abdicarão da vida de caçador. Caso contrário jamais retomarão o caminho para fora da mata. Tornar-se-ão espíritos da floresta a vagar pela mata afugentando outros caçadores. Pois sou eu o protetor de todas as matas, e mesmo que venham a caçar em florestas longínquas lá estarei e lá ficarão para a eternidade.
– Ó estranha criatura que se denomina espírito protetor, apieda-se de nós. Prometo jamais caçar um animal sequer, nem mesmo pescarei coisa alguma. Deixe-me ir e verá a minha promessa cumprida.

Casemiro não disse nada, parecia não acreditar. Jogou-se ao chão e me pareceu sem vida. Não fosse sua brusca respiração e seu choro abafado teria o julgado como morto. Não jurou nem disse nada. A criatura fez com sinal para eu me ir embora. Abandonei Casemiro e corri para a fazenda. Perguntaram-me sobre seu paradeiro e eu disse ter se perdido na mata. Sobre a onça disse não a ter encontrado e que não retornaria a mata para caçá-la. Todas as noites os ventos sopram da mata um choro enlouquecido de homem. Casemiro se tornou um fantasma a perambular pela mata. De lá não podia sair. E eu nunca antes havia contado essa história a ninguém, temo que me confirmem as minhas suspeitas de que me tornei um homem ensandecido.

André de Sá

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