Era mania minha sair
para caçar na mata atrás da fazenda de Seu Nonato, a fazenda Beira do Mato. Dia
e noite eu caçava os mais variados animais da floresta. Por prazer ou para
comer. Vivia no mato, do mato e para o mato. Eu e minha espingarda. Sozinho eu
não ficava, no mato tenho companhia de bicho, de água fresca, de terra fria e
de muitas árvores. De gente raramente. Tão raro as caçadas feitas em companhia
de homem que eu trazia todas elas na memória. A minha última é aquela que as
lembranças se fazem presente em todos os meus sonhos e pensamentos. Três dias
com Casemiro no mato caçando uma onça.
– Onça excomungada,
onde foi que se meteu?
– Como foi que perdeu
o rastro do bicho, Jânio?
– Onça é bicho
esperto, quando vê perseguidor logo muda de direção, circunda e some para algum
lugar.
– Preferia que fosse
você o bicho esperto. Homem ser enganado por animal que é coisa absurda de se
ver.
Casemiro era assim,
homem desses mandões, rabugentos que dá queixa de tudo sem dar um braço em
auxílio. Um imperador é o que era. Cadê sua coroa, Senhor Imperador Casemiro?
Não tem, imperador coisa nenhuma. Apesar da arrogância era boa companhia para
caçar. Tinha bom olho, raramente errava um disparo. Ele e a espingarda eram um
só. Um dia errou. A gente na mata, caçando furão, foi quando ouvi o tiro. Não
vi quando disparou, estava procurando o bicho, o estrondo é que acusou disparo.
– Pegou? Cadê?
– Atirei atoa, para
fazer barulho. Não suporto mais esse silêncio, queria ter certeza de que não
ficara ensurdecido.
Que silêncio se a
mata tem música própria? Se não é a passarinhada a cantar num coro disforme é o
mico a guinchar ou o zunzum das abelhas. O riso alegre do riacho a correr. A
natureza tem sua própria melodia harmoniosa. Até o farejar dos cachorros
rompiam o silêncio. Tiro não se fazia necessário além de espantar a caça. Era
mentira do Casemiro, eu vi o buraco do chumbo ali no chão, bem na margem do
riacho servindo de companhia para a noz partida mordiscada. Tentou pegar o
furão enquanto comia, errou e o danado correu afugentado. Não confessou o erro,
nunca confessa. Mas agora não pode errar, a caça é a onça. Um dia é da caça o
outro é do caçador. Caça e caçador invertidos na realidade. Tiro mal dado e a
onça é que faz de nós a sua caça.
O primeiro dia
inteiro na mata e nem a sombra da onça foi vista. Ao anoitecer levantamos
acampamento e nos sentamos com a fogueira interposta ente nós e as barracas.
Nessas horas Casemiro emudece, desaprende a falar. Vira um fantasma do meu
lado, daqueles que a gente vê, mas desacredita por não ouvir ruído algum. Uma
imagem sem som, feito a nuvem lá no céu que corre silenciosa. Assim ficou a
noite toda. Nem “boa noite”, nem “durma com deus”. E é de noite no mato que a
gente sente a falta da companhia de uma voz humana. Todos os olhos da mata nos
vigiando os movimentos e nossos corpos com a carne arrancada. Os olhos nos
penetravam a alma e liam nossos pensamentos. No calar da noite quem faz música
é o grilo. A escuridão densa e pesada esmaga, a solidez da pretura do ar
transforma o bravo homem em menino encurralado pelo medo. Em todas as noites
que eu passava na mata sentia um olhar desconhecido, não de bicho nem anjo da
guarda. Era um olhar vigilante e silencioso. Não eram os olhos brilhantes da
mata que me olhavam, pois o próprio negrume da noite me impunha seus olhos.
Essa desconfortável situação me levava a deitar logo cedo. Dormir era custoso,
somente depois que os olhos vigilantes se fossem.
De manhã cedinho é
que levantávamos. Água fria do riacho no rosto, uma fruta bem fresquinha e tudo
pronto para a caçada. Eu chupava ainda uma rapadura que era para dar vigor. Pé
no mato e mais um dia de caçada. Cadê a onça? Para cá que veio, para o mato.
Raimundo mesmo que viu quando a besta atacava o gado lá na fazenda.
– Cês carecia de ver,
tava ali perto da cerca. Quase que pega a estrela, tadinha. Se não fosse pelo
tiro que soltei pro alto o bicho tinha jantado a vaquinha. Correu adoidado pro
meio do mato, ainda deve de ta lá.
Raimundo poderia ter
acertado a onça se não fosse um preto medroso. A mão trêmula não permitiria um
disparo certeiro. Homem nessas horas precisa ser frio. E frio como a geada nós
nos dirigimos para a mata. Só eu e Casemiro, Raimundo ficou na fazenda. Tão
logo o rastro fresco da onça se fez visível. Somente o rastro, o bicho era
esperto, não se mostrava.
Dois dias na mata e
nem sinal da onça. Raimundo tinha descrito o bicho: amarela, cabeça grande
feito homem, manchas pretas pelo corpo. Onça pintada. Nunca cacei. Casemiro diz
ter caçado algumas, mas eu não acredito. História de pescador... de caçador, no
caso. O rastro do primeiro dia desaparecido. Bicho esperto. Já estava desesperançado.
E para piorar, cadê o Casemiro? Sumiu. Agora além de onça tenho de caçar meu
companheiro. O dia se arrastou longamente até o cair da noite e na escuridão
novamente não encontrei companhia, nem mesmo do fantasma do Casemiro como na
noite anterior. Novamente os olhos em cima de mim. Até quando? Não sei. A
fogueira lá fora se pôs a bruxulear com o repentino sopro da floresta. A
ventania fazia balançar a cabana e o assobio do vento me arrepiava a espinha. O
cachorro se pôs a ladrar e depois a choramingar. Desprendeu-se da corda que o
mantinha preso e fugiu na escuridão da noite. E Casemiro? Poderia estar em pior
situação. Como se perdeu eu não sei, mas sumiu sem deixar rastros, como aquela
onça desgraçada. Não fosse por ela estaria agora no aconchego da minha cama.
Mas não posso voltar sem antes vê-la morta e, consequentemente, a fazenda em
segurança. Tentei dormir, mas o sono não veio. Senti uma presença de fora da
cabana, mas nas vezes que botei a minha cabeça para fora não vi ninguém. E foi
rezando que passei toda a noite.
O terceiro dia chegou
e eu cismei de que deveria encontrar Casemiro primeiro. Por isso retornei ao
local de onde nos perdemos e me pus a procurar por rastros. Não muito tempo
demorei para encontrar pegadas de homem na lama à beira do riacho. Segui as
pegadas por centenas de metros num caminho tortuoso mata adentro e para o
interior da mata elas me levaram. No decorrer do caminho se tornou visível
outro rastro que a princípio julguei ser interposto também por Casemiro. Mas era
menor no tamanho acusando ser rastro de uma segunda pessoa. As duas trilhas ora
estavam dispostas progressivamente em uma direção certa e clara, ora um sol com
os seus raios irradiando do centro levando a distintas trilhas em diferentes
direções. Todas as trilhas eu segui até que da árvore um corpo pesado se abateu
sobre mim e tão logo um abraço poderoso envolveu minha perna direita e meu
abdome. Uma enorme sucuri se enroscava em meu corpo enquanto eu resistia numa
luta feroz. Não conseguia alcançar meu facão que caiu da minha mão a poucos
metros do meu local de combate. O revólver preso pela cobra na algibeira. Teria
que tentar um tiro com a espingarda na cabeça do animal que chegava já no meu
peito. Se errasse a mão o tiro acertaria a mim a queima-roupa, mas era a única
coisa a se fazer. Levei a mão às costas buscando alcançar a espingarda quando a
cobra prendeu o meu braço esquerdo e apertou firme meu peito me tirando todo o
fôlego. Não podia respirar, a cabeça zonza girando... e lá adiante estava o fantasma
do Casemiro com a espingarda na mão. Era o fantasma silencioso, só imagem, como
se mostrava durante a noite. Sua espingarda também fantasmagórica exalava uma
fumaceira como acusando um disparo silencioso. Nada fazia som, nem meu coração,
talvez porque já não mais batesse. E então a pressão cedeu e o ar se fez
odorífero a minha volta. Eu estava banhado em um líquido pastoso e fedido.
Aquele corpo de cobra foi separado do meu e eu pude ver que no lugar onde
ficava a cabeça do animal havia agora uma massa horrenda de forma indefinida.
– Passou maus bocados
longe de mim, Jânio?
– Casemiro, onde foi
que se meteu e como foi que me encontrou?
– Eu estava logo
atrás de você no mato, daí você sumiu. Fiquei horas te procurando em vão. Eu é
que te pergunto onde tivera se metido. Como te encontrei eu posso explicar.
Depois que você desapareceu, eu acampei e esperei a noite passar. Logo de manhã
procurei pelos seus rastros e pensei ter descoberto. Era um rastro que levava
para o interior da mata e julguei muita imprudência da sua parte ter-se
dirigido tão adentro em ausência de companhia. Porém era o único rastro e me
dispus a segui-lo. Depois de caminhar por muitas horas seguindo o rastro é que
me dei conta de que meu cantil se encontrava completamente seco, e que o riacho
muito atrás de mim faz uma curva para fora da mata. Resolvi voltar para
conseguir água e também por ter perdido o rastro a certa altura. Enquanto eu
regressava ao riacho me deparei com seus gritos e percebi seu apuro com a
cobra. Peguei a espingarda e com um tiro só acertei a cabeçona do animal.
– Devo-lhe a vida.
– Deve-me uma onça.
– Encontrou algo a
respeito?
– Coisa alguma, essa
onça deve ter evaporado.
– E sobre o rastro
que encontramos?
– Olha Jânio, não
somos os únicos homens nessa mata. O rastro está bem fresco e leva para o
interior onde a mata é mais fechada.
– Ontem mesmo senti
alguém de fora da cabana, pensei que fosse você Casemiro, mas não vi ninguém.
– Isso foi a sua
imaginação, desde criança assim com fantasias na cabeça.
– Fantasia ou não a
gente tem outra companhia nesse mato.
– Exatamente, além de
onça teremos que caçar homem também.
Recuperei meu facão e
as minhas forças e resolvemos seguir o rastro de homem porque o da onça só Deus
sabe encontrar. Já era noite quando resolvemos parar para comer e levantar
acampamento. A mata se adensou não permitindo uma barraca tão próxima da outra.
Logo cedo adormeci, ignorando os olhos que novamente se punham sobre mim.
Sonhei um sonho com a onça que vinha me devorar na mata. Acordei ouvindo o som
de um grunhido que julguei ser memória do meu sonho até que Casemiro botou sua
cabeça para dentro da minha barraca me chamando para fora. Peguei o meu lampião
e o acendi me dirigindo para fora da barraca.
– A onça, Jânio! Pega
a espingarda.
Peguei a espingarda e
fui seguindo Casemiro que se adiantou no caminho beirando o barranco. Estava
tão escuro que somente enxergava o chão onde pisava iluminado pela luz fraca do
lampião. Mais uma vez um grunhido e eu podia claramente distinguir sua direção.
Caminhamos alguns metros até que Casemiro parou bruscamente com os olhos fixos
num ponto adiante, e com dificuldade eu podia notar uma mancha amarela que se
movia sobre um tronco de árvore seca e retorcida arrancada do chão. Espingardas
na mão e já preparava o disparo quando um assobio cortou o silêncio
abruptamente. O animal virou-se para a direção do som agudo e saiu em disparada
antes de qualquer reação minha ou de Casemiro. Perdemos a preciosa chance neste
inesperado encontro com a onça devido ao assobio de um homem que se encontrava
próximo. Casemiro pegou o lampião e dirigiu-se à direção tomada pela onça que
era a mesma do assobio. Eu pus-me a segui-lo. O amanhecer não demoraria a chegar
e nosso caminho nos levava numa íngreme subida. Lá no alto uma figura nos
aguardava com a onça rondando seu corpo. Não era homem como imaginávamos, mas
uma criatura supostamente saída de uma fábula encantada. O cabelo de fogo, a
cara de menino, os pés virados traziam os calcanhares à frente de forma
estranhamente contrária aos nossos. Com os olhos nos censurava. O pavor tomou
conta de mim. Casemiro tentou um disparo. A espingarda mascou. Seu lampião se
apagou.
– A caça terminou
para vocês. Retornarão às suas casas e abdicarão da vida de caçador. Caso
contrário jamais retomarão o caminho para fora da mata. Tornar-se-ão espíritos
da floresta a vagar pela mata afugentando outros caçadores. Pois sou eu o
protetor de todas as matas, e mesmo que venham a caçar em florestas longínquas
lá estarei e lá ficarão para a eternidade.
– Ó estranha criatura
que se denomina espírito protetor, apieda-se de nós. Prometo jamais caçar um
animal sequer, nem mesmo pescarei coisa alguma. Deixe-me ir e verá a minha promessa
cumprida.
Casemiro não disse
nada, parecia não acreditar. Jogou-se ao chão e me pareceu sem vida. Não fosse
sua brusca respiração e seu choro abafado teria o julgado como morto. Não jurou
nem disse nada. A criatura fez com sinal para eu me ir embora. Abandonei
Casemiro e corri para a fazenda. Perguntaram-me sobre seu paradeiro e eu disse
ter se perdido na mata. Sobre a onça disse não a ter encontrado e que não
retornaria a mata para caçá-la. Todas as noites os ventos sopram da mata um
choro enlouquecido de homem. Casemiro se tornou um fantasma a perambular pela
mata. De lá não podia sair. E eu nunca antes havia contado essa história a
ninguém, temo que me confirmem as minhas suspeitas de que me tornei um homem
ensandecido.
André de Sá
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