sábado, 11 de janeiro de 2014

Carpideira

Andava eu desempregada e endividada. Desesperançada da vida. Com a corda no pescoço. Já havia alguns meses desde que abandonei meu emprego lá na tecelagem, logo antes do incêndio. Tentei uns bicos como costureira, mas não me renderam boa quantia. Uma mãe precisa de mais dinheiro para sustentar os filhos.
Gente trabalhadeira não pode ficar desocupada que a cabeça logo se afunda em pensamento, devaneios que prefiro evitar. Cabeça vazia é oficina do diabo. E era na hora que me faltava serviço que vinha a tristeza. Pensava na morte e morte não é coisa de se pensar, Deus me livre. Por isso procurei no jornal alguma oferta de emprego, qualquer coisa que fosse. Vi um anúncio: “Contratamos carpideiras para o velório do Seu Ignácio”. Coloquei meu vestido preto, joguei o véu por sobre minha cabeça e já me dirigia ao velório.
Seu Ignácio eu conhecia assim de vista. Era homem rico do armazém. Fui eu quem costurou o vestido de primeira comunhão da filhinha dele, Isabel. Pagou-me bem pela costura, era homem pão-duro não. Mas agora o coitado havia morrido, e eu ainda nem sei do quê. Andava ruim do coração, deve ter morrido de infarto desses fulminantes e silenciosos, que chega sem aviso e não se demora a morrer. Como um ladrão que entra sorrateiro e rouba a vida sem a gente perceber. A pessoa não sofre, tão rápido que não dá tempo de sofrer.
Velei o corpo do velho e chorei por demais. Parecia que quem tinha morrido era um pai meu. As lágrimas escorriam, tinham facilidade em sair dos olhos. Mas tristeza eu não sentia. Era talento, coisa que você nasce pra fazer e faz sem aprender com ninguém.
– Meus sentimentos, alguns diziam, Deus conforta, há de confortar sim. Não me conheciam, pensavam que eu era da família. E eu mais ainda chorava. Tomava um cafezinho com biscoito, e chorava.
Dona Matilde me viu:
– Ora dona Vivinha, vê se carece de sofrer tanto por essa gente que não é sua. Quem te vê assim pensa que é a viúva.
– Mas é que me pagaram pra chorar pelo homem, dona Matilde.
– Ora, onde já se viu pagar alguém pra chorar por defunto. Endoidou?
– A família dele tem cara fechada, é gente ruim de choro. Eu choro pra essa gente que veio ver Seu Ignácio não achar que era homem pouco desejoso. Eu mesma gostava muito dele, homem bom, vendia fiado pra mim.
A moça Isabel tava lá, crescida, as crianças de hoje espicham rápido num piscar de olho. Tão bonita num vestido comprido quase arrastando no chão. Não era o que tinha costurado não, mas era bonito. Chorou menos que eu. As lágrimas costumam fugir das pessoas na hora em que mais se precisa chorar, o olho fica seco. Quem não chora quando se morre de tristeza ela não vai embora, fica entalada no peito e se sofre a vida toda, até que se desata num choro desengasgado que lava tudo e carrega a tristeza pra longe. Mas tava lá com a cara mais pálida que a do defunto. Parecia uma boneca de cera ou porcelana. Olhos tão vermelhos, de cansaço e sono, de chorar não era não.
Enterraram Seu Ignácio de tardinha lá no cemitério da igreja. Pagaram-me uns quatrocentos réis e eu me fui embora pra casa dar de comer às crianças.
Noutro dia eu me pus a escutar notícias de algum velório. Escutei nenhuma não. Verdade é que pouca gente morre nessa cidadezinha. Aqui todo mundo é calmo, vive em paz e sem preocupação. Em cidadezinha assim que todo mundo se apega a Nossa Senhora se vive tranquilo. Quando tem briga é desses bêbados. Mas não chega a demorar e um cai no chão de tanta manguaça. Um dia desses Tonho cismou de dar uma surra em Chiquinho por causa de cachaça. Tonho puxou o revólver:
– Que você não me mete medo, ta ouvindo? Tenho quatro balas aqui e não me importo de gastar todas nessa sua fuça.
– Se você fosse homem, Tonho, vinha aqui e me enfrentava na mão. Revólver é coisa de covarde.
A turma do deixa disso tratou logo de separar a briga e acabar com a confusão. Já no outro dia Tonho e Chiquinho estavam bebendo e proseando como compadres de longa data.
Ainda tem o médico Dr. Juscelino que cuida da gente, médico bom do Rio de Janeiro. Tratou minha caxumba e a catapora da minha menina mais velha. O meu mais moço teve perto de morrer com pneumonia, mas o Dr. salvou meu menino. Era homem de boa conduta, generoso, não aceitava dinheiro de quem não tinha.
– Deus te pague Dr.
– Amém dona Vivinha. E ele ia embora todo satisfeito por cuidar da gente.
Domingo fui à missa e já tava sem dinheiro de novo. No meio da reza me veio um pensamento assim sem querer, desses que o coisa ruim coloca na nossa cabeça sem que a gente desconfiasse. Que Deus levasse alguém pra perto dele, pra eu poder ir trabalhar. Morri de vergonha de ter pensado coisa tão maldosa. Mas arrepender eu não me arrependi não. É que pra trabalho de carpideira é preciso gente morta. Sem defunto, carpideira é que morre, de fome, e também morre toda a cria. Pensamento maldoso que Deus há de perdoar. Enquanto me justificava com Deus o meu pensamento interesseiro, não é que nessa hora eu vi a dona Consuelo se sentir mal.
– Traz água pra ela, gritavam as comadres.
Mas dona Consuelo se apagou e ali mesmo morreu. Boca espumando, a cara redonda e roxa que parecia jabuticaba. Hora do almoço eu tava lá chorando no velório dela. Pedi um pagamento ao Abelardo, filho da dona Consuelo. Deu-me duzentos réis e eu me fui embora de ouvido em pé prestando atenção se tinha outro defunto na cidade.
Tinha não. Quase chegando em casa me encontrei com Isabel.
– Como tem passado, perguntei.
– Ando boa não, acho que é gripe.
Foi aí que pensei comigo: dá um jeito de morrer logo pra eu ir chorar no seu velório. No dia seguinte Isabel tava de cama. Dr. Juscelino disse que era grave, tuberculose, talvez. Na outra semana morreu e eu fui lá chorar. Até o fim do mês mais dois velórios pra eu chorar e já tinha conseguido um bom dinheirinho. Deus olhava por mim, chamava as almas pra eu poder ganhar a vida. Deus sabe o que faz, chama ninguém atoa não, se chamou é porque essa gente já prestou serviço pra Ele. Pois cada um tem sua missão na vida que Deus designou, a gente vive pra cumprir a missão que só Deus sabe qual é. Quando a gente cumpre a missão Deus logo chama pra perto dele. A minha missão é de chorar pra essa gente que morre e a missão deles é morrer pra eu chorar. Assim se trabalha no projeto de Deus e a salvação vem pra todos.
Mas as mortes pararam por aí. Fiz novena pra Nossa Senhora da Boa Morte, mas ela não quis levar ninguém. Deus costuma testar a gente, quer medir a nossa força, a vontade de desempenhar os seus desígnios. Não é sempre que Ele deixa tudo claro, limpo assim como a água cristalina da nascente do riacho. Às vezes temos que decifrar a vontade de Deus, entender o destino que ele nos traçou. E eu já estava começando a ficar sem dinheiro de novo até que a preta Rosana veio ter comigo. Veio me pedir pra remendar as roupas da Dona Santinha. Chamei Rosana pra entrar. Foi quando ela chegou que entendi o que Deus queria me mostrar. Vivinha, sou eu que chamo as almas, mas não posso tirá-la de um corpo que ainda vive.  Lembrei que meu falecido marido tinha guardado no armário um pouco de cianeto. Peguei o veneno e dissolvi no chá e ofereci à preta. Ela tomou e foi embora. No outro dia correu notícia da preta morta e eu chorando do lado dela. Ninguém me pagou não, era preta, escrava ninguém se importa. Por isso matei a dona Santinha que era senhora da preta.
Foi assim. Dona Santinha veio buscar as roupas que eu costurei. Nem havia mexido nelas ainda. Meu propósito não era ser costureira, Deus tinha outro plano para mim.
– Vivinha, é que eu vim buscar as roupas que deixei para você remendar, será que já estão prontas?
– Estão sim senhora. Espera um pouco… Não, quer dizer, por que a senhora não entra, dona Santinha?
Chamei-a pra vir me ajudar a trocar umas telhas quebradas. Como era período chuvoso, a casa se encharcava toda por dentro devido às goteiras. Era preciso atravessar a casa toda e sair na horta. Sala, copa, cozinha e horta.
– Agora é só subir a escada de madeira, com cuidado, alguns dos degraus estão quase soltos, uma pisadela bem forte e a senhora se esborracha lá embaixo.
Quando chegamos lá em cima dei um empurrão e a velha despencou e bateu a cabeça lá no chão. Na manhã do outro dia eu tava chorando lá no velório dela. Dessa vez eu vi dinheiro.
E de novo as pessoas custavam a morrer. Era propósito de Deus eu chorar pelos mortos, mas eu não queria mais matar ninguém. Na verdade era medo. A polícia podia suspeitar. Polícia não segue as leis de Deus, só do homem. Fiquei sabendo que a praga varreu uma cidade lá pros lados de Baependi. Era a malária. Bem podia Deus trazer ela pra cá. Mas praga é coisa perigosa, não escolhe pobre ou rico, corria risco de me adoentar também. Melhor deixar do jeito que tá, praga pras bandas de cá pode levar meus filhos e eu.
Mas a praga veio. De começo foi uma maravilha, só os moradores lá de baixo que se adoentaram, a doença quis subir o morro não. É que lá embaixo corria o córrego, e quando chovia a água descia lá do alto do morro e se empoçava. Ficava uma sujeira e um lamaçal e dali a doença gostava. Dona Matilde foi a primeira a morrer. Dr. Juscelino remediou e mandou ficar de cama, mas dona Matilde, teimosa que só ela, continuou no serviço de costura.
– Vaso ruim não quebra. É doença passageira, passa logo.
– Dona Matilde, se assossegue que doença é coisa séria. Descansa o corpo, tira folga, deixa o trabalho para quando tiver boa. Trabalho não é coisa tão urgente, temos que zelar pela nossa saúde, é prioridade.
– Não carece cama, Dr. Juscelino. Costurar não é serviço pesado. O que cansa é a bunda de ficar tanto tempo sentada. Se eu me deitar é capaz de conformar e morrer da doença.
Morreu costurando. Chorei no velório dela. Depois morreu Abelardo e mais um punhado de gente. Começava a me enriquecer. Já não levava mais aquela vida de desapossada. Minha casa agora reformada se impunha como um castelo em meio a tantos pobres casebres que a circundava. Quando não me encontravam em velório ou na missa me achavam no teatro. Era senhora não mais somente pela idade e viuvez. Era agora gente importante, a melhor carpideira da região, quiçá do Brasil.
Mas Deus faz as coisas de modo que a gente não compreende. Escreve certo por linhas tortas. Não tardou muito e minha menina mais velha caiu de cama, o corpo em brasa, a menina sonhava cada sonho esquisito de alucinação que dava dó de ver a agonia da coitadinha.
– Mamãe me ajuda! Estou me afogando. O rio me leva com a correnteza forte, me ajuda mamãe!
– Clarinha, minha filha, se acalme. Não tem água alguma aqui. Segura aqui a mão da mamãe.
Não tinha rio nem água além da garrafa com o líquido benzido que eu trouxe da igreja. Devia tá sonhando com o próprio suor. Ensopada, parecia tampa de panela quando se cozinha o arroz e respinga água feito chuva. Logo morreu e meu menino se adoentou também.
– Oh meu Deus, não faz isso comigo, não me leve também o meu Juquinha. Prometo de pé juntinho fazer uma romaria nesse ano mesmo e levo meu Juquinha se o Senhor o deixar viver.
– Mãe, eu vou morrer conforme Clarinha?
– Claro que não, meu Juquinha. Deus há de ouvir minhas preces. Meu filho há de ficar bom e jogar bola de novo lá no terreiro. Há de correr e trepar na jabuticabeira. Há de empinar pipa lá no alto do morro. Há de ficar moço e casar com moça muito bonita, ter filhos, muitos filhos. E eu vou ser vovó daquelas coruja que não desgruda dos netinhos.
Não adiantou a promessa e nem as preces, meu Juquinha foi se encontrar com Deus e me deixou agora sozinha.
– Sozinha não dona Vivinha, a senhora tem a companhia de Deus.
– Acho que até Deus há de me abandonar Dr. Juscelino, se é que já não o fez.
– Não fala bobeira dona Vivinha. Deus é bom e há de amparar a senhora. Levanta a cabeça e vá à luta, Deus não quer te ver assim tão abatida. A senhora é mulher aguerrida, trabalhadeira. Logo se ocupa em algum serviço e esquece esses pensamentos levianos.
Apeguei-me a Deus mais não. Fiz a promessa e Ele fez de conta que não me ouviu. Meu propósito era chorar nos velórios, dar fé às almas de que eram desejosas ao subirem pro céu percebendo o quanto a gente gostava e a falta que vamos sentir. Mas e os meus filhos? Se Deus tinha uma missão pra eles nem tempo tiveram de concluir.
– Deus sabe o que faz dona Vivinha. Se Ele levou suas crianças foi pra livrá-las do sofrimento.
– Ora, dona Severa. E quanto ao meu sofrimento? Por mim Ele há de olhar não? Tirou-me os meus tesourinhos mais preciosos e agora me deixa aqui esperando a morte chegar.
– Larga de ser besta, mulher. Imagina se em vez de seus filhos fosse você morrer e deixar as crianças sem amparo. Quem é que ia cuidar deles? Você é moça bem vivida e ainda tem muito pra viver, não se deixe abater e vá à luta.
A verdade é que gente após gente foi morrendo. Eu já não mais chorava nos velórios, estava esperando o meu próprio. Quem é que viria chorar por mim? Ninguém viria. Talvez caísse morta e por aqui mesmo ficasse sem um caixão, flores e pessoas pra chorar. Meu corpo sem ver terra, comido pelos vermes assombraria essa casa afugentando as pessoas daqui. Meu fantasma vagueando e chorando por meu próprio corpo numa cantiga de menina ou um grito chorado que chama pela mãe. A epidemia se foi e ninguém mais morria. Se morresse eu não ia lá chorar, não choro mais por morto nem por vivo. Nem pra Deus. Pois n’Ele confiei e a minha confiança Ele traiu. Cumpri os desígnios que me foram propostos. Quando o morto não me veio de mão beijada eu arranjei a morte. Fui a obreira mais dedicada e não colhi os frutos que plantei. Deus é que destruiu minha plantação antes mesmo de ela florescer. Talvez eu vá para o inferno que é onde a alma morre. Eu poderia chorar pelas almas que morrem e o Diabo me deixar a minha viver na lamentação eterna, num choro que nunca cessa, numa vida que não se morre.
André de Sá

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