Josefa é casada com o
homem mais rico da cidade, Seu João Fagundes, o dono da tecelagem. Vive uma
vida de rainha, mandando e desmandando na política, na tecelagem, em casa, na
casa dos vizinhos, no mercado, na igreja, na ferrovia, na Santa Casa de
Misericórdia e onde mais desejar. Seu temperamento quente demite e readmite
empregados, tanto na casa quanto na tecelagem, por motivos às vezes mínimos e
banais, ou por mal entendidos e caprichos próprios. É uma mulher difícil de
lidar, o que torna frequentes as viagens a negócio que Seu João Fagundes faz.
E, apesar de não amar seu marido, quando este se ausenta é que Josefa se sente
só e piora seus tratos com os empregados descontando neles as dores de sua
solidão.
Já se conta um mês da
viagem de Seu João Fagundes e Josefa se encontrava lascívia, louca de desejo
por um homem. Era uma belíssima e jovem mulher com seus vinte anos de idade, o
que fazia dela muito desejável. Mas a sua famigerada índole escondia a sua
beleza, e não havia homem algum na cidade que tivesse coragem suficiente para
trocar uma vida sossegada por uma noite de prazer com aquela mulher. Tentava
seduzir os empregados para satisfazerem suas vontades carnais, mas estes sabiam
que aquilo era um convite para uma sentença de morte. Então Josefa se arrumava
toda, se perfumava e ia à feira de onde voltava sem atenção alguma. Ia ao
teatro e os assentos adjacentes ao seu nunca eram ocupados. Ia à missa e a
cerimônia era cancelada. E mais ainda odiava as pessoas e mais os empregados
sofriam a sua ira.
Chegou ao ponto de
demitir todos os empregados da casa e passou a viver sozinha. A casa onde
morava era demasiada grande para que sozinha a pudesse manter limpa e
organizada. Portanto só se importava com a limpeza da sala de jantar, da biblioteca
e do seu quarto. E na biblioteca era onde passava a maior parte do dia, lendo
seus livros eróticos enquanto se deliciava em gargalhadas com aquelas palavras
libertinas. Sua leitura foi interrompida pelo som da campainha. Josefa se manteve
em silêncio a espera que a pessoa fosse embora. Mas a campainha insistiu uma
vez, outra e outra mais, até que Josefa, vencida pela impaciência, se dirigiu à
porta para atender aquela pessoa que a incomodava.
– Boa noite,
desculpe-me o incômodo, eu procuro a dona Josefa, ela se encontra?
Era um jovem e
robusto rapaz, aparentava ter a mesma idade de Josefa, trajava uns trapos
sujos, seus cabelos estavam emaranhados, a barba desajeitada, e um odor exalava
do corpo dele.
– Sim, sou eu. O que quer?
– É que eu cheguei
hoje na cidade e gostaria que me arranjasse um emprego na tecelagem, eu não sei
a profissão, mas garanto que aprendo rápido se a senhora me der a oportunidade.
Mas eu só posso trabalhar no turno da noite.
Josefa foi tomada de
um súbito calor. Porém naquele estado em que se encontrava o rapaz não podia
aceitá-lo em sua cama. Pouco lhe interessou o motivo de o rapaz preferir
trabalhar a noite. Ficou curiosa em ver aquele corpo limpo, os cabelos cortados
e a barba aparada e o convidou a entrar:
– Não tem lugar para
você na tecelagem, mas preciso de alguém para me ajudar em casa. Amanhã você
começa o seu trabalho, mas antes precisa de um banho e um trato na sua
aparência. Entre e vamos dar um jeito nisso.
O rapaz hesitou por
uns instantes, mas acabou cedendo ao convite. Josefa preparou a banheira e lhe
entregou uma toalha e roupas limpas. Enquanto o rapaz se banhava, Josefa foi ao
seu quarto e se vestiu num vestido justo, se perfumou, penteou seus cabelos e
ficou a espera. Quando o jovem rapaz saiu do banheiro se mostrou um belo homem
agora com seus cabelos limpos e penteados, a barba aparada e o corpo perfumado.
Josefa não pôde controlar o seu desejo, logo o agarrou e, aos beijos, foi
levando-o para a cama. Ali tiveram uma noite de prazer como Josefa jamais teve
com Seu João Fagundes. Seus corpos se entrelaçaram durante quase toda a noite
num intenso calor. A certa hora da madrugada o rapaz se levantou como num
susto, se vestiu e às pressas se pôs a sair do quarto como numa fuga.
– Espere, o que foi?
– Eu preciso ir,
tenho que resolver uns assuntos.
– A essa hora? E
ainda não me disse o seu nome.
– Eu me chamo
Humberto.
E saiu pela porta de
entrada da sala sem que Josefa o pudesse alcançar. E Josefa agora só pensava em
Humberto e se ele voltaria à sua casa. Resolveu esperá-lo até a noite dominada
pela ansiedade a vigia dos ponteiros do relógio que insistiam com uma lenta volta
a realizarem o seu trabalho.
Quando enfim a noite
caiu, Josefa já estava perfumada a espera, sentada no sofá da sala, pelo homem
com quem passara a noite anterior. O relógio marcava sete horas com suas
retumbantes badaladas avisando a todos os cantos da casa sobre a chegada da
noite. E Josefa esperou por mais um tempo a chegada de Humberto. Neste momento
os ponteiros do relógio se punham a trabalhar apressadamente, ao contrário do
ocorrido durante o dia. Já marcavam no relógio a hora de número dez e Josefa
impaciente abriu uma garrafa de vinho. Ali mesmo na sala bebeu e as horas
passaram. Os ponteiros girando mais rápido e a sua cabeça acompanhando o
movimento numa tontura que a jogou ao chão. Acordou com as badaladas do relógio
quando este marcou meia-noite, e um som estridente veio interromper aquele
padrão desfazendo a harmonia. Era a campainha avisando a chegada de seu amante.
Rapidamente Josefa se pôs de pé e abriu a porta. Humberto logo entrou puxado
pelos braços de sua amada e ali mesmo na sala se submeteram ao pecado. Tão
embriagada estava que não percebeu quando Humberto se foi. O relógio agora
marcava oito horas da manhã com suas badaladas martelando a cabeça de Josefa.
Chegou a pensar que tudo tivesse sido um sonho. Mas o paletó caído no chão
confessava o amor desperdiçado durante a noite embriagada.
Passou o dia sem
comer e com a cabeça latejando. Nunca tivera bebido tanto e agora sofria com
uma intensa ressaca. Esforçou-se para tomar um banho e se recompor, mas o corpo
ainda continuou fraco. E quando a noite Humberto veio, ela o deixou possuir seu
corpo e as poucas forças que tinha se extinguiram. Ao acordar se sentiu mais
exausta, mas a cabeça já não mais doía. Seu João Fagundes persistiu com suas
viagens por mais três meses e nesse tempo a paixão noturna que Josefa vivia com
Humberto continuou. Já os empregados da tecelagem sabiam do caso da patroa e na
cidade corria o boato de que Josefa dormia com um amante todas as noites. Mas
ninguém ousava impedir ou mesmo contestar aquele amor. E em todas as noites
Humberto fazia uma visita à Josefa e antes de amanhecer o dia, fugia da cama
daquela mulher. Josefa nunca soube dos verdadeiros motivos, mas suspeitava de
vários. Talvez ele tivesse uma família, talvez fugisse dos olhares
recriminatórios das pessoas da cidade. Isso não importava a ela. Somente
aqueles momentos em que passavam juntos à noite é que ela dava importância. E
como todos os bons momentos de felicidade proibida têm o seu fim, chegou a
carta que noticiava a volta do marido.
– Olha Humberto,
precisamos conversar.
– Diga.
– Hoje pela manhã
chegou uma carta de meu marido, ele estará de volta dentro de dois dias.
– E o que você
pretende fazer?
– Eu não quero te
perder, mas não vamos po-der nos encontrar aqui como sempre.
– Pois sua casa é o
único lugar onde podemos nos encontrar.
– Arranjamos outro
lugar.
– Não há outro lugar.
– Por acaso está
querendo terminar tudo?
– Se você me ama,
deve deixar o seu marido.
– Ele não me
deixaria, é o homem mais rico da região, compraria qualquer um para nos matar.
– Então nós o matamos
primeiro.
Josefa por um momento
cogitou a ideia e a saboreou um pouco enquanto ainda estava fresca em seu
pensamento.
– Você está louco,
aqui nessa cidade se cumpre as leis. Com certeza nos prenderiam.
– Não se fizer
parecer que foi um acidente.
– Como pretende?
– Eu tenho um plano.
Leve ele para a tecelagem e o mantenha lá dentro. Faça isso na primeira noite
do dia que ele regressar.
E assim fez Josefa
quando Seu João Fagundes retornou de sua longa viajem. Não parecia ter sentido
a falta da esposa e passou quase todo o dia cuidando dos negócios na tecelagem.
No fim da tarde Josefa foi ao encontro do marido no seu escritório. Propôs
fazer amor com ele, mas não quis:
– Aqui neste
escritório não, está maluca?
– É que senti muito a
sua falta, não há pro-blema algum, os empregados já se foram.
– E também me vou eu.
Aqui é um lugar de trabalho, não um bordel.
– Mas eu sou sua
mulher!
– Cala a boca e vamos
já para casa!
E enquanto Seu João
Fagundes puxava a mulher pelo braço para fora do escritório, Josefa o empurrou
contra a parede com toda a força. O homem bateu com a cabeça e caiu
inconsciente. Josefa saiu do escritório e encontrou Humberto na tecelagem.
– Onde ele está?
– Desmaiado no
escritório.
– Perfeito! Vá para
casa, quando terminar eu te encontrarei.
Josefa foi para casa
e esperou alguns instantes. Logo chegou Humberto e juntos comemoraram com
champagne e uma noite de prazer. Antes do amanhecer novamente Humberto deixou
Josefa. Dessa vez ela não pôde aturar, cooperara com a morte do marido para
poder ficar com o amante e este novamente se põe em fuga. Vestiu um roupão e
foi seguir o seu amado. Viu que ele ia pela rua ao lado da linha do trem. Ao
passar pela tecelagem pôde ver os escombros ainda em chamas do prédio
desabando. O povo curioso tentava pará-la em busca de respostas, mas ela se
esquivava. Humberto subiu uma ladeira apressadamente e com muito esforço Josefa
pôde o acompanhar de longe. Entrou no cemitério da igreja e Josefa por um
instante hesitou. Depois de um momento conseguiu reunir coragem e entrou
também. Não o via em lugar algum. Somente lápides e muitas cruzes brancas e
pretas. Josefa se sentiu indisposta e com enjoo. Pôs a mão na barriga onde se
fazia perceptível uma pequena protuberância. Caiu de joelhos e vomitou. Ali na
sua frente pôde ver uma cova escavada e dentro dela havia um corpo.
Aproximou-se para olhar o cadáver foi tomada por um susto que lhe fez escapar
as palavras:
– Eu estou grávida de um homem morto!
– Eu estou grávida de um homem morto!
André de Sá
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